terça-feira, 23 de setembro de 2014

HERESIAS CRISTOLOGICAS E TRINITARIANAS

                                

As Heresias Cristológicas e Trinitárias


Após verificar que o Filho de Deus é verdadeiro Deus com o Pai e o Espírito Santo, a atenção dos teólogos devia voltar-se mais detidamente para a questão: como Jesus pode ser autêntico Deus e autêntico homem? Como se relacionam entre si a Divindade e a humanidade de Jesus? A resposta a estas perguntas exigiu grande esforço por parte dos estudiosos, que a formularam em quatro etapas:
1) a fase apolinarista;
2) a fase nestoriana;
3) a fase monofisita;
4) a fase monotelita.

A seguir, estudaremos as três primeiras destas etapas.

1) O Apolinarismo

Em plena controvérsia ariana, o Bispo Apolinário de Laodicéia (Síria), 310-390, mostrava-se fervoroso defensor do Credo niceno contra os arianos, mas afirmava que em Cristo a natureza humana carecia de alma humana; tomava ao pé da letra as palavras de S. João 1,14: “O Lógos se fez carne”, entendendo carne no sentido estrito, com exclusão de alma. O Lógos de Deus faria as vezes de alma humana em Jesus, isto é, seria responsável pelas funções vitais da natureza humana assumida pelo Lógos.
Os argumentos em favor desta tese eram os seguintes: duas naturezas completas (Divindade e humanidade) não podem tornar-se um ser único; se Jesus as tivesse, Ele teria duas pessoas ou dois eu - o que seria monstruoso. Além disto, dizia, onde há um homem completo, há também o pecado; ora o pecado tem origem na vontade; por conseguinte, Jesus não podia ter vontade humana nem a alma espiritual, que é a sede da vontade.
Apolinário expôs suas idéias no livro “Encarnação do Verbo de Deus”, que ele apresentou ao Imperador Joviano e que os seus discípulos difundiram. - Foram condenadas num sínodo de Alexandria em 362; depois, pelo Papa S. Dâmaso em 377 e 382 e, especialmente, pelo Concílio de Constantinopla I (381). Verificando a oposição que lhe faziam bons teólogos, Apolinário limitou-se a negar a presença de mente (nous) humana em Jesus. S. Gregório de Nissa († 394) e outros autores lhe responderam mediante belo princípio: “O que não foi assumido pelo Verbo, não foi redimido” - o que quer dizer: Deus quer santificar e salvar a natureza humana pelo próprio mistério da Encarnação ou pela união da Divindade com a humanidade; se pois, a humanidade estava mutilada em Jesus, ela não foi inteiramente salva.
Em Antioquia, fundou-se uma comunidade apolinarista, tendo à frente o Bispo Vital. Por volta de 420 esta foi reabsorvida pela Igreja ortodoxa, mas nem todos os seus membros abandonaram o erro, que reviveu, de certo modo, na heresia monofisita.

2) O Nestorianismo.

Afirmada a existência da natureza humana completa em Jesus, os teólogos puderam estudar mais detidamente o modo como humanidade e Divindade se relacionaram em Cristo. Antes, porém, de entrar em particulares, devemos mencionar as duas principais escolas teológicas da antigüidade: a alexandrina e a antioquena, que muito influíram na elaboração da Cristologia.
A escola alexandrina era herdeira de forte tendência mística; procurava exaltar o divino e o transcendental nos artigos da fé. Interpretava a S. Escritura em sentido alegórico, tentando desvendar os mistérios divinos contidos nas Sagradas Letras. Em assuntos cristológicos, portanto, era inclinada a realçar o divino, com detrimento do humano. Ao contrário, a escola antioquena era mais dada à filosofia e à razão: voltava-se mais para o humano, sem negar o divino. Interpretava a S. Escritura em sentido literal e tendia a salientar em Jesus os predicados humanos mais do que os atributos divinos. Era mais racional, ao passo que a de Alexandria era mais mística.
Dito isto, voltemos à história do dogma cristológico. A primeira tentativa de solução foi encabeçada por Nestório, elevado à cátedra episcopal de Constantinopla em 428. Afirmava que o Lógos habitava na humanidade de Jesus como um homem se acha num templo ou numa veste; haveria duas pessoas, em Jesus - uma divina e outra humana - unidas entre si por um vinculo afetivo ou moral. Por conseguinte, Maria não seria a Mãe de Deus (Theotókos), como diziam os antigos, mas apenas Mãe de Cristo (Christokós); ela teria gerado o homem Jesus, ao qual se uniu a segunda pessoa da SS. Trindade com a sua Divindade.
Nestório propunha suas idéias em pregações ao povo, nas quais substituía o título “Mãe de Deus” por “Mãe de Cristo”. As suas concepções suscitaram reação não só em Constantinopla, mas em outras regiões também, especialmente em Alexandria, onde S. Cirilo era Bispo ardoroso. Este escreveu em 429 aos bispos e aos monges do Egito, condenando a doutrina de Nestório. As duas correntes se dirigiram ao Papa Celestino I, que rejeitou a doutrina de Nestório num sínodo de 430. Deu ordem a S. Cirilo para que intimasse Nestório a retirar suas teorias no prazo de dez dias, sob pena de exílio; Cirilo enviou ao Patriarca de Constantinopla uma lista de doze anatematismos que condenavam o nestorianismo. Nestório não se quis dobrar, de mais a mais que podia contar com o apoio do Imperador; além do mais, tinha muitos seguidores na escola antioquena, entre os quais o próprio Bispo João de Antioquia.
Em 431, o Imperador Teodósio II, instado por Nestório, convocou para Éfeso o terceiro Concílio Ecumênico a fim de solucionar a questão discutida. S. Cirilo, como representante do Papa Celestino I, abriu a assembléia diante de 153 Bispos. Logo na primeira sessão, foram apresentados os argumentos da literatura antiga favoráveis ao título Theotókos, que acabou sendo solenemente proclamado; daí se seguia que em Jesus havia uma só pessoa (a Divina); Maria se tornara Mãe de Deus pelo fato de que Deus quisera assumir a natureza humana no seu seio. Quatro dias após esta sessão, isto é, a 26/06/431 chegou a Éfeso o Patriarca Jogo de Antioquia, com 43 Bispos seus seguidores, todos favoráveis a Nestório; não quiseram unir-se ao Concílio presidido por S. Cirilo, representante do Papa; por isto formaram um conciliábulo, qual depôs Cirilo.
O Imperador acompanhava tudo de perto e sentia-se indeciso. S. Cirilo então mobilizou todos os seus recursos, para mover Teodósio II em favor da reta doutrina; nisto foi ajudado por Pulquéria, piedosa e influente irmã mais velha do Imperador. Este finalmente apoiou a sentença de Cirilo e exilou Nestório. Todavia os antioquenos não se renderam de imediato; acusavam Cirilo de arianismo a apolinarismo. Após dois anos de litígio, em 433 puseram-se de acordo sobre uma fórmula de fé que professava um só Cristo e Maria como Theotókos. O Nestorianismo, porém, não se extinguiu. Os seus adeptos, expulsos do Império Bizantino, foram procurar refúgio na Pérsia, onde fundaram a Igreja Nestoriana.
Esta teve notável expansão até a China e a Índia Meridional; mas do século XIV em diante foi definhando por causa das incursões dos mongóis; em grande parte, os nestorianos voltaram à comunhão da Igreja universal (são hoje os cristãos caldeus e os cristãos de São Tomé). Em nossos dias muitos estudiosos têm procurado reabilitar a pessoa e a obra de Nestório, que parece ser autor de uma apologia intitulada “Tratado de Heraclides de Damasco”: pode-se crer que tenha tido reta intenção; mas certamente sustentou posições errôneas por se ter apegado demasiadamente à Escola Antioquena.

3) O Monofisismo

A luta contra o Nestorianismo, que admitia em Jesus duas naturezas e duas pessoas, deu ocasião ao surto do extremo oposto, que é o monofisismo ou monofisitismo (“em Jesus há uma só natureza e uma só pessoa: a divina”). O primeiro arauto desta tese foi Eutiques, arquimandrita de Constantinopla: reconhecia que Jesus constava originariamente da natureza divina e da humana, mas afirmava que a natureza divina absorveu a humana, divinizando-a; após a Encarnação, só se poderia falar de uma natureza em Jesus: a divina.
Esta doutrina tornou-se a heresia mais popular e mais poderosa da antigüidade, pois, para os orientais, a divinização da humanidade em Cristo era o modelo do que deve acontecer com cada cristão. Eutiques foi condenado como herege no Sínodo de Constantinopla em 448, sob o Patriarca Flaviano. Todavia não cedeu e reclamou contra uma pretensa injustiça, pois tencionava combater o Nestorianismo. Conseguiu assim ganhar os favores da corte. Solicitado pelo Patriarca Dióscoro de Alexandria, Teodósio II Imperador convocou em 449 novo Concílio Ecumênico para Éfeso, confiando a presidência do mesmo a Dióscoro, que era partidário de Estiques. Dióscoro, tendo aberto o Concílio negou a presidência aos legados papais; não permitiu que fosse lida a Carta do Papa S. Leão Magno, que propunha a reta doutrina: as duas naturezas em Cristo não se misturam nem confundem, mas cada qual exerce a sua atividade própria em comunhão com a outra; assim Cristo teve realmente fome, sede e cansaço, como homem, e pôde ressuscitar mortos como Deus. - Esse Concílio de Éfeso proclamou a ortodoxia de Eutiques; depôs Flaviano, Patriarca de Constantinopla, e outros Bispos contrários à tese monofisita... Todavia os seus decretos foram de curta duração. Os Bispos de diversas regiões o repudiaram como ilegítimo ou, segundo a expressão do Papa São Leão Magno, como “latrocínio de Éfeso”; pediam novo Concílio que de fato foi convocado após a morte de Teodósio II pela Imperatriz Pulquéria (irmã de Teodósio) e pelo general Marcião, que em 450 foi feito Imperador e se casou com Pulquéria.
O novo Concílio, desta vez legítimo, reuniu-se em Caledônia, diante de Constantinopla, em 451; foi o mais concorrido da antigüidade, pois dele participaram mais de 600 membros, entre os quais três legados papais. A assembléia rejeitou o “latrocínio de Éfeso”; depôs Dióscoro e aclamou solenemente a Epístola Dogmática do Papa São Leão a Flaviano; esta serviu de base a uma confissão de fé, que rejeitava os extremos do Nestorianismo e do Monofisismo, propondo em Cristo uma só pessoa e duas naturezas: “Ensinamos e professamos um Único e idêntico Cristo... em duas naturezas, não confusas e não transformadas, não divididas, não separadas, pois a união das naturezas não suprimiu as diferenças; antes, cada uma das naturezas conservou as suas propriedades e se uniu com a outra numa Única pessoa e numa Única hipóstase”.
Assim terminou a fase principal das disputas cristológicas: em Cristo não há duas naturezas e duas pessoas, pois isto destruiria a realidade da Encarnação e da obra redentora de Cristo; mas também não há uma só natureza e uma só pessoa, pois Cristo agiu como verdadeiro homem, sujeito à dor e à morte para transfigurar estas nossas realidades. Havia, pois, uma só pessoa (um só eu) divina, que, além de dispor da natureza divina desde toda a eternidade, assumiu a natureza humana no seio de Maria Virgem e viveu na terra agindo ora como Deus, ora como homem, mas sempre e somente com o seu eu divino.
O encerramento do Concílio de Calcedônia não significou a extinção do monofisismo. Além da atração que esta doutrina exercia sobre os fiéis (especialmente os monges), propondo-lhes a humanidade divinizada de Cristo como modelo, motivos políticos explicam essa persistência da heresia; com efeito, na Síria e no Egito certos cristãos viam no Monofisismo a expressão de suas tendências nacionalistas, opostas ao helenismo e à dominação bizantina. Por isto os monofisitas continuaram a lutar contra o Imperador, que havia exilado Dióscoro e Eutiques e ameaçado de punição os adeptos destes: ocuparam sedes episcopais; inclusive a de Jerusalém (ao menos temporariamente).
No século VII a situação se agravou, pois os muçulmanos ocuparam a Palestina, a Síria e o Egito, impedindo a ação de Bizâncio em prol da ortodoxia nesses países. Em conseqüência, os monofisitas foram constituindo Igrejas nacionais: a armena, a síria, a mesopotâmica, a egípcia e a etíope, que subsistem até hoje com cerca de 10 milhões de fiéis. No Egito, os monofisitas tomaram o nome de coptas, nome que guarda as três consoantes da palavra grega Aigyptos (g ou k, p, t ); são os antigos egípcios. Os ortodoxos se chamam melquitas (de melek, Imperador), pois guardam a doutrina ortodoxa patrocinada pelo Imperador em Calcedônia. Há coptas que se uniram a Roma em 1742, enquanto os outros permanecem monofisitas, mas professam quase o mesmo Credo que os católicos.
Na Abissínia os monofisitas também são chamados coptas pois receberam forte influência do Egito. "Dentre os melquitas, grande parte aderiu ao cisma bizantino, separando-se de Roma em 1054; certos grupos, porém, estão hoje unidos à Igreja universal. Na Síria e nos países vizinhos, os monofisitas foram chamados jacobitas, nome derivado de um dos seus primeiros chefes: Jacó Baradai (=o homem da coberta de cavalo, alusão às suas vestes maltrapilhas). Jacó, bispo de Edessa (541-578), trabalhou com zelo e êxito para consolidar as Comunidades monofisitas, as quais deu por cabeça o Patriarca Sérgio de Antioquia (544). A história das disputas cristológicas prosseguirá no capítulo seguinte.


As Heresias Cristológicas II


Continuemos a estudar as heresias cristológicas no intuito de compreender melhor a sutileza da disputa e a ação do Espírito de Deus através das vicissitudes humanas.

4) O Henotikón e o Teopasquismo

Vinte e cinco anos após o Concílio de Calcedônia, em 476, deu-se nova investida dos monofisitas contra a ortodoxia. Com efeito; os Patriarcas Pedro Mongo, de Alexandria, e Acácio de Constantinopla, adeptos do monofisismo, redigiram um Símbolo de fé que condenava tanto Nestório quanto Eutiques; rejeitava o Concílio de Calcedônia e afirmava que as normas de fé deveriam ser o símbolo niceno-constantinopolitano e as definições do Concílio de Éfeso (431). Tal fórmula de 476 podia ser interpretada de diversas maneiras. O Imperador Zenão promulgou esse símbolo de fé, dito Henotikón (Edito de União), com o vigor de lei do Estado. Assim esperava atingir a unidade religiosa dentro do Império.
Infelizmente, porém, causou mais acesas divisões. Muitos católicos e os monofisitas mais extremados recusaram obedecer ao Imperador por causa da ambigüidade do Henotikón. Ao saber das manobras do Imperador, o Papa Félix III enviou legados a Constantinopla para pedir a Zenão, e ao Patriarca Acácio fidelidade ao Concílio de Calcedônia. Como fossem vãs essas solicitações, o Papa resolveu depor Acácio, Patriarca de Constantinopla. Tal medida era muito grave, pois significava ruptura com os cristãos orientais em geral e com o Imperador, que os queria dirigir no sentido do monofisismo. O Papa, porém, foi corajoso no cumprimento do dever de preservar a reta fé.
A ruptura durou 35 anos (484-519). Foi chamada “cisma acaciano”, durante o qual o monofisismo se propagou amplamente entre os orientais. Zenão morreu em 491, tendo por sucessor o Imperador Anastásio (491-518), também simpático aos monofisitas. Por isto, as conversações que o Papa encaminhou com o monarca, foram infrutíferas. A situação se tornou ainda mais sombria por causa da questão teopasquita. Com efeito; a liturgia grega cantava a Triságion (três vezes santo) nos seguintes termos: “Santo (hágios) Deus, Santo Forte, Santo imortal, tem piedade de nós”. Ora o bispo monofisita Pedro Fulão de Antioquia acrescentou-lhe as palavras “que foste pregado na cruz por cause de nós”.
O Imperador Anastásio mandou recitar a fórmula ampliada em Constantinopla; donde resultou grande agitação. Diziam alguns monges e fiéis: “Um da Santíssima Trindade padeceu na carne”; foram chamados teopasquitas. A fórmula em foco podia ser entendida segundo a ortodoxia: a segunda Pessoa da SS. Trindade, tendo-se feito homem, padeceu na carne de Jesus. Mas, como a origem desses dizeres era monofisita, os ortodoxos desconfiaram dos mesmos, de mais a mais que os monofisitas lhes favoreciam calorosamente. Morto o Imperador Anastásio, sucedeu-lhe Justino (518-527), que se empenhou por restabelecer a comunhão com a Sé de Roma. O Papa Hormisdas (514-523) acolheu o propósito de Bizâncio e mandou legados a esta cidade com uma fórmula de união dita “Livro da Fé do Papa Hormisdas”: esta proclamava o símbolo de fé calcedonense e as cartas dogmáticas de Leão Magno; renovava o anátema sobre Nestório, Eutiques, Dióscoro e outros chefes monofisitas; além disto, declarava que, conforme a promessa de Cristo a Pedro em Mt 16,16-19, a fé católica se conservava intacta na Sé de Roma; por isto os fiéis deviam obediência às decisões tomadas por esta.
Era assim professado o primado do Papa em 515. O Patriarca João II, de Constantinopla, os bispos e os monges presentes nesta cidade assinaram tal fórmula. Estava terminado o cisma. O monofisismo perdeu muito da sua voga, mas as controvérsias continuaram.

5) Os Três Capítulos

O Imperador Justiniano (527-565) foi homem de grande ideal, que tencionou dar ao Império um período de fausto como não o tivera até então. Era, ao mesmo tempo, prepotente, de modo que exerceu forte cesaropapismo. Compreende-se então que as controvérsias teológicas tenham merecido sua zelosa atenção. O Imperador, querendo conciliar os ânimos, só fez provocar maiores tumultos. O bispo Teodoro Asquida de Cesaréia, muito influente na corte, sugeriu ao Imperador que condenasse três nomes de autores antioquenos tidos como inspiradores do nestorianismo; dizia que bastaria essa medida para obter a volta dos monofisitas: A comunhão da Igreja Universal.
Esses três nomes constituíram Três Capítulos, a saber: 1) Teodoro de Mopsuéstia († 428), sua pessoa e seus escritos; 2) os escritos de Teodoreto de Ciro († 458) contra Cirilo e o Concílio de Éfeso; 3) a carta do bispo Ibas de Edessa († 435) ao bispo Mário de Ardashir em defesa de Teodoro de Mopsuéstia e contra os anatematismos de Cirilo. O Imperador acolheu a proposta e publicou um edito que anatematizava os Três Capítulos em 543. Este decreto dividiu os ânimos, pois não se viam claramente os erros pretensamente cometidos pelos três autores. Justiniano, porém, obrigou o Patriarca Menas e os bispos orientais a assinar o anitema.
Os ocidentais deviam seguir-lhes o exemplo, tendo o Papa Vigilio à frente. Este relutou; por isto o Imperador mandou buscá-lo de Roma para Constantinopla. Um ano após sua chegada, Vigílio em 548 escreveu o ludicatum, em que condenava os Três Capítulos, ressalvando, porém, a autoridade do Concílio de Calcedônia. O gesto do Papa causou indignação entre os ocidentais, principalmente no Norte da África, pois era uma estrondosa vitória do cesaropapismo. Em conseqüência, o Papa e o Imperador em 550 decidiram convocar um Concílio Ecumênico para resolver o caso; entrementes nenhuma inovação seria praticada. Todavia em julho de 551 Justiniano repetiu o anátema sobre os Três Capítulos - o que provocou ruptura com o Papa Vigílio, que teve de procurar asilo em igrejas de Constantinopla e Calcedônia.
A respeito do Concílio, o Papa e o Imperador já não concordavam entre si. Por isto Justiniano convocou o Concílio por sua exclusiva iniciativa. Reunido sob a presidência de Eutíquio, novo Patriarca de Bizâncio, renovou a condenação dos Três Capítulos (maio e junho de 553). Vigílio então em 13/05/553, no decurso do próprio Concílio, publicou o Constitutum que se opunha à condenação dos Três Capítulos. Justiniano não aceitou a nova posição do Papa e mandou cancelar o nome de Vigílio nas orações da Liturgia. Finalmente, sob o peso das pressões e da doença, o Papa em dezembro de 553 retirou o seu Constitutum e aderiu às decisões do Concílio de Constantinopla de 553. Num segundo Constitutum de 23/02/554, expôs as razões da sua atitude. Em conseqüência, o Imperador permitiu-lhe voltar para Roma; todavia morreu em viagem (555). Era vítima da sua inconstância de caráter.
Os Papas que lhe sucederam, a começar por Pelágio I (556-561), reconheceram o Concílio de 553 como ecumênico; é o de Constantinopla II. As dioceses do Ocidente aos poucos também o foram reconhecendo, embora tivessem consciência de que significava uma humilhação para o Papado. Notemos que as hesitações do Papa Vigílio não versavam sobre assuntos de fé propriamente dita, mas sobre a oportunidade ou não de se condenarem três nomes de escritores antigos. "O episódio também é interessante por evidenciar quanto era prestigiada a Sé Romana; o Imperador quis absolutamente ganhar o consenso do Papa Vigílio; por isto mandou buscá-lo em Roma e pressionou-o repetidamente para que subscrevesse ao decreto imperial, como se este precisasse da assinatura do Papa para ser válido.

6) Monergetismo e monotelitismo

Os monofisitas insistiam em se auto-afirmar. Por isto a heresia reapareceu no século VII sob nova forma. O Patriarca Sérgio de Constantinopla desde 619 ensinava que em Jesus havia uma só enérgeia ou uma só capacidade de agir (monergetismo); a capacidade humana estaria absorvida na divina e não teria suas expressões naturais. O Imperador Heráclio (610-641) aceitou a nova fórmula e conseguiu assim reconciliar grupos monofisitas com o Império.
Todavia o monge palestinense Sofrônio resolveu resistir à nova doutrina, denunciando-a como monofisismo velado. O Patriarca Sérgio de Constantinopla deixou então de falar de uma só faculdade operativa, para afirmar uma só vontade (a Divina tendo absorvido a humana) em Jesus (monotelitismo). Muito habilmente Sérgio tentou ganhar os favores do Papa Honório I (625-638); este, tendo recebido informações unilaterais, escreveu duas cartas ao Patriarca de Constantinopla, em que aderia genericamente à sua posição, embora não compartilhasse propriamente nem o monergismo nem o monofisismo; para evitar escândalos ordenava que não se falasse de uma ou duas energias.
Levando adiante a causa de Sérgio, o Imperador Heráclio em 638 promulgou a profissão de fé dita “Ectese”, redigida pelo Patriarca, que reafirmava o monotelitismo. Os bispos orientais a aceitaram quase unanimemente, ao passo que os sucessores do Papa Honório (morto em 638) a condenaram.
O Imperador Constante II (641-648), sobrinho de Heráclio, retirou a “Ectese”, mas, aconselhado pelo Patriarca Paulo de Constantinopla, publicou novo edito dogmático, chamado Typos, em 648, que proibia falar de uma ou duas vontades em Cristo. O monarca tencionava assim pôr fim à contenda. Ora no Ocidente o Papa Martinho I (649-653), percebendo a sutileza dos bizantinos, reuniu um Concílio no Latrão (Roma) em 649, o qual declarou que em Cristo havia dois modos de operar e duas vontades naturais, e puniu com a excomunhão os fautores das novas idéias. O Imperador, indignado, mandou prender o Papa e leva-lo para Constantinopla (653); aí foi humilhado como traidor e, por fim, exilado para a Criméia, onde morreu de maus tratos. Vários cristãos orientais foram tratados de modo semelhante por resistirem ao Imperador, merecendo especial destaque o abade São Máximo o Confessor, que foi cruelmente martirizado.
Constantino IV Pogonato (668-685), filho de Constante II, procurou a paz e, para tanto, decidiu convocar um Concílio Ecumênico, idéia que o Papa Agatão (678-681) aprovou com solicitude. Tal foi o sexto Concílio Ecumênico, o de Constantinopla III, celebrado de novembro de 680 a setembro de 681, com a presença de 170 participantes. Os conciliares elaboraram uma profissão de fé, que completava a de Calcedônia:
“Nós professamos, segundo a doutrina dos Santos Padres, duas vontades naturais e dois modos naturais de operar, indivisos e inalterados, inseparados e não misturados, duas vontades diversas, não, porém, no sentido de que uma esteja em oposição à outra, mas no sentido de que a vontade humana seque e se subordina à divina"
Isto quer dizer que em Jesus havia duas faculdades de querer - a divina e a humana - de tal modo, porém, que a vontade humana se sujeitava à divina, como atesta a oração no horto das Oliveiras, conforme Mc 14,36.
O Concílio condenou os defensores do monotelitismo e o próprio Papa Honório, tido como fautor de tal doutrina. A condenação de Honório suscitou longos debates entre historiadores e teólogos modernos. Na verdade, pode-se tranqüilamente dizer o seguinte:
O Papa Honório, intervindo na controvérsia, não quis proferir definições ex cathedra, nem quis discutir como teólogo. Unilateralmente informado por Sérgio, julgou que a discussão a respeito de uma ou duas vontades em Cristo era mero litígio de palavras, como estava nos hábitos dos bizantinos; por isto julgou que podia aprovar a posição de Sérgio sem afetar a reta fé. A expressão “uma vontade”, aliás, foi explicada pelo próprio Honório em sua carta a Sérgio, no sentido de conformidade do querer humano com o divino. Quanto às faculdades de operar (energeias), Honório esclareceu, seu ponto de vista referindo-se à epístola dogmática de São Leão a Flaviano, que diz: ambas as naturezas operam na única pessoa de Cristo, não misturadas, não separadas e não confusas, aquilo que é próprio de cada uma delas. Donde se vê que o juízo proferido sobre Honório pelo Concílio de 681 foi severo demais; a Sé de Roma nunca o aprovou integralmente.


As Heresias Trinitárias


Tendo estudado a expansão do Cristianismo até o século VI, passamos a considerar a história das doutrinas da fé na antigüidade. Um dos mais sérios problemas doutrinários que se puseram na Igreja antiga, foi o da conciliação da unidade de Deus (firmemente professada pelo Antigo Testamento) com a Trindade de Pessoas (Pai, Filho e Espírito Santo, tais como nos foram revelados pelo Novo Testamento). A inteligência dos cristãos se pôs à procura de uma fórmula satisfatória, que, após duras controvérsias, foi definida pelos Concílios de Nicéia I (325) e Constantinopla I (381). É a história dessa longa reflexão que vamos estudar.

7) O monarquianismo

Nos séculos II/III alguns escritores cristãos julgavam que o Verbo (Lógos) ou o Filho de Deus só se tornara pessoa no tempo; em vista da criação do mundo, o Pai teria gerado ou emitido o Lógos, de modo a constituir a segunda Pessoa da SS. Trindade - Esta concepção negava a eternidade do Filho de Deus e o subordinava ao Pai. Todavia os defensores dessa teoria afirmavam a Divindade do Filho, de modo que não suscitavam grave polêmica na sua época.
Podemos dizer que a primeira tentativa sistemática de conciliar unidade e pluralidade em Deus professava a unidade com detrimento da pluralidade. Chamou-se, por isto, monarquianismo, expressão derivada da exclamação: “Monarchiam tenemus. - Conservamos a monarquia” ( Tertuliano, Adversus Praxeam 3). Apresentava duas fórmulas:

8) O monarquianismo dinamista

O monarquianismo dinamista professou que Jesus era mero homem, o qual no momento do Batismo terá sido revestido de poder (dynamis) divino; foi, portanto, um homem adotado por Deus como Filho, com intensidade especial. O fundador desta corrente foi Teódoto de Bizâncio, cristão de notável cultura grega, que o Papa São Vítor excomungou (190). Os seus discípulos, Asclepiódoto e Teódoto o jovem, quiseram organizar uma comunidade própria, para qual nomearam um Bispo chamado Natal; este foi o primeiro antipapa, o qual, arrependido, tornou-se ao seio da Igreja. Tal corrente teve novo representante na pessoa de Paulo de Samosata, homem ambicioso. Este via em Jesus um mero homem no qual terá habitado “como num templo” o Logos ou a Sabedoria de Deus, que em escala menor habitava em Moisés e nos profetas. Um concílio regional reunido em Antioquia excomungou Paulo (268); mas os numerosos adeptos deste continuaram a professar a sua doutrina, de modo que o Concílio ecumênico de Nicéia teve que se ocupar com a escola dos paulanos (325).
É de notar que o mencionado Concílio de Antioquia em 268 rejeitou a afirmação de que o Filho ou Logos é da mesma substância ou natureza (homoousios) que o Pai. Ora precisamente esta expressão foi consagrada pelo Concílio de Nicéia I (325) como fórmula de fé. Para entender os fatos, devemos observar que Paulo de Samosata usava a palavra homoousios para significar que o Logos ou o Filho era uma só pessoa com o Pai.

9) Monarquianismo modalista

Esta corrente ensinava que o Filho era o próprio Pai ou uma modalidade pela qual o Pai se manifestava; por conseguinte, o Pai terá padecido na cruz (donde o nome patri, de pater, pai; passianismo, de passus, padecido).Tal doutrina, devida a Noeto de Esmirna, foi levada para Roma e Cartago (África), dando origem ao partido patripassiano, que muito agitou a comunidade de Roma. O Papa Zeferino (198-217), numa declaração oficial, afirmou a Divindade de Cristo e a unidade de essência em Deus, sem, porém, negar, como faziam os patripassianos, a diversidade de pessoas do Pai e do Filho.
O modalismo foi estendido por Sabélio, em Roma, ao Espírito Santo. Este pregador professava três revelações de Deus: uma, como Pai, na criação e na legislação do Antigo Testamento; outra, como Filho, na Redenção; e a terceira, como Espírito Santo, na obra de santificação dos homens. Designava cada uma dessas manifestações como prósopon, palavra grega que significava originariamente “máscara ou papel de ator de teatro“, visto que posteriormente prósopon significou também pessoa, a doutrina de Sabélio tornou-se ambígua e conquistou muitos adeptos, que de boa fé lhe aderiram sem querer negar a trindade de Pessoas em Deus. Como se vê, o grande problema consistia em afirmar a Trindade de Pessoas em Deus sem cair no triteísmo ou sem professar três deuses.
A controvérsia havia de arder por todo o século IV, envolvendo todas as camadas da população, desde o Imperador até os mais simples fiéis; a ingerência do poder imperial, que desde 313 era simpático ao Cristianismo, contribuiu para tornar difíceis e penosas essas discussões teológicas; elas assumiam, não raro, um caráter direta ou indiretamente político. A problemática suscitou na Igreja os esforços de numerosos santos e doutores, que, com seus talentos intelectuais e sua vida, colaboraram decisivamente para a reta formulação da fé cristã. O período áureo da literatura cristã está precisamente ligado às disputas teológicas.
Estudemos agora as controvérsias do século IV: Arianismo e semiarianismo. Rejeitando o monarquianismo dinamista e modalista, a lgreja afirmava sua fé em Cristo, Pessoa Divina e distinta do Pai. Todavia não estava explicada a maneira como se relacionam entre si o Filho e o Pai. No século IV muitos admitiram a Divindade do Filho, subordinando-o, porém, ao Pai; donde resultou a tese do subordinacionismo, que teve em Ário de Alexandria o seu principal arauto.

10) Arianismo

O presbítero Ário de Alexandria foi mais longe do que os pensadores anteriores: afirmava que o Filho é criatura do Pai, a primeira e a mais digna de todas, destinada a ser instrumentos para a criação de outros seres. Em virtude da sua perfeição, o Filho ou Logos poderia ser chamado “Filho de Deus”, como reza a tradição. O Bispo Alexandre de Alexandria reuniu um Sínodo local, contando cerca de cem Bispos, que condenaram a doutrina de Ário e dos seus seguidores em 318. A decisão foi comunicada a outros Bispos, inclusive ao Papa S. Silvestre. Ário, porém, conseguiu novos defensores para a sua causa o que tornou mais árdua a controvérsia. Diante dos fatos, o imperador Constantino, que em 324 vencera Licínio, tornando-se Onico senhor do Império, resolveu intervir: tinha como assessor teológico o santo Bispo Ósio de Córdoba (Espanha), que Constantino enviou a Alexandria para aproximar Ário do Bispo Alexandre; a missão, porém, fracassou.
Então Constantino resolveu convocar um Concílio ecumênico para Nicéia na Ásia Menor em 325, ao qual compareceram cerca de 300 Bispos, provenientes de todas as partes do mundo cristão; o Papa Silvestre, de idade avançada, mandou dois presbíteros seus representantes. As discussões foram longas e agitadas. Por fim, os padres conciliares redigiram o Símbolo de Fé de Nicéia, que afirmava ser o Filho “Deus de Deus, luz de luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado não feito, consubstancial (homoousios) ao Pai; por Ele foram feitas todas as coisas”. A palavra homoousios torna-se, de então por diante, a senha da reta doutrina. Significava que o Filho é da mesma natureza (= Divindade) que o Pai; não saiu do nada como as criaturas, mas desde toda a eternidade foi gerado sem dividir a natureza divina.
O Imperador Constantino tomou aos seus cuidados a defesa do Concílio ecumênico de Nicéia. Exilou Ário e quatro Bispos que não queriam aceitar, na íntegra, definição do Concílio. Condenou às chamas os escritos de Ário; seria punido quem os guardasse às ocultas.

11 ) As divisões do Arianismo

lnfelizmente, porém, as controvérsias não terminaram. O termo homoousios parecia a alguns suspeito de sabelianismo ou de modalismo. Por isto alguns Bispos e monges puseram-se a combater o Concílio, apoiados pelos Imperadores Constâncio (337) e Valente (364-78), sucessores de Constantino. Do lado da ortodoxia, destacam-se: S. Atanásio, Bispo de Alexandria desde 328, que sofreu vários exílios; e o Papa Libério, que em 355 foi deportado pelo Imperador Constâncio; alguns historiadores antigos dizem que Libério conseguiu voltar à sua sede de Roma, subscrevendo uma fórmula de fé antinicena e deixando de apoiar S. Atanásio; se isto é verdade, deve-se à fraqueza humana, mas não se tratava de definição solene e sim de um pronunciamento pessoal que o Papa fazia.
De resto, sabe-se que Libério, uma vez retornado a Roma, combateu eficazmente o arianismo. Os antinicenos, com o respaldo do Imperador, julgaram-se vencedores, depondo Bispos e reunindo Concílios regionais. Acontece, porém, que se dividiram: tendo negado a identidade de substância entre o Pai e o Filho ou afirmaram uns que o Filho era semelhante (homoiousios) ao Pai, enquanto outros o tinham como dissemelhante (anhomoios). A controvérsia era alimentada também pela sutileza do linguajar; palavras próximas umas das outras tinham significados diferentes: assim homoousios e homoiousios; genetós (feito) e gennetós (gerado), Nikainon (de Nikaia, sede do Concílio ortodoxo de 325) e Nikenon (de Nike, sede de um Concílio herético).
Finalmente, após mais de cinqüenta anos de disputas ardentes, a ortodoxia foi prevalecendo, especialmente por obra dos três doutores da Capadócia (Ásia Menor): S. Basílio de Cesaréia († 379), S. Gregório de Naziano († 390) e S. Gregório de Nissa († 394). Estes elaboraram a fórmula grega: mía ousía kaí treis hypostáseis, uma essência (ou substância) e três pessoas, fórmula que exprimia fielmente o pensamento dos padres nicenos e o conteúdo da reta fé: há uma só Divindade, que se afirma três vezes ou em três Pessoas. O grande protetor da ortodoxia, no fim do século IV, foi o Imperador Teodósio (379´395), que, pouco depois de subir ao trono, convidou todos os habitantes do Império a aderir “aquela fé que professam Dâmaso em Roma e Atanásio em Alexandria”; mandou também entregar as igrejas de Constantinopla aos católicos. O Concílio Ecumênico de Constantinopla I (381) havia de consolidar a proclamação da reta fé contra o arianismo. Isto, porém, não quer dizer qual tal heresia se tenha extinto logo; várias tribos germânicas, entrando dentro das fronteiras do Império, foram evangelizadas por arianos, de modo que abraçaram o Cristianismo ariano sob forma de religião nacional. Resta agora estudar a discussão relativa ao Espírito Santo.

12) O Macedonianismo

O Espírito Santo, embora atestado por numerosos textos bíblicos (como Jo 14-16), foi menos considerado no decorrer do século IV. É certo, porém, que quem julgava ser o Filho criatura do Pai tinha o Espírito Santo na conta de criatura do Filho; seria um dos espíritos servidores (cf. Hb 1,14), diferente dos anjos apenas por gradação. S. Atanásio, ao combater o arianismo, defendia também a divindade e a consubstancialidade do Espírito Santo. Por isto, um sínodo de Alexandria em 362 reconheceu a Divindade do Espírito Santo.
Isto, porém, não bastou para dissipar os erros: Macedôneo, Bispo ariano de Constantinopla deposto em 360, era ferrenho adversário da Divindade do Espírito, reunindo, em torno de si bom número de discípulos, que se chamavam macedonianos ou pneumatômacos (pneuma = espírito; máchomai = combater). Vários Sínodos rejeitaram a doutrina de Macedônio; o mesmo foi feito pelos padres capadócios. Mas o pronunciamento definitivo se deve ao Concílio de Constantinopla I realizado em 381: 150 padres ortodoxos, depois do afastamento de 36 macedonianos, condenaram o macedonianismo e, para explicitar claramente a fé ortodoxa, retomaram o artigo 32 do Símbolo de fé niceno, que rezava apenas: “Cremos no Espírito Santo”; foram-lhe acrescentadas as palavras: “Senhor e Fonte de Vida, que procede do Pai (cf. Jo 15,26), adorado e glorificado juntamente com o Pai e o Filho, e falou pelos Profetas”.
Assim teve origem o Símbolo de fé niceno-constantinopolitano, que refuta tanto a heresia ariana quanto a macedônia. Restava, porém, dirimir ainda uma dúvida: se o Espírito procede do Pai, como se relaciona com o Filho? A resposta foi diversa no Oriente e no Ocidente; todavia a diversidade consiste mais na formulação do que na própria doutrina. Os gregos, desde o século IV afirmam que o Espírito procede do Pai através do Filho, ao passo que os latinos ensinam que procede do Pai e do Filho (Filioque). Na Espanha o Filioque foi inserido no Credo niceno-constantinopolitano em 589 e oficialmente recitado, passando depois para outras regiões de língua latina. Os gregos se recusam a aceitar tal inserção, que se tornou pomo de discórdias nos séculos IX-XI.
Atualmente as dificuldades vão sendo superadas, pois em última instância se trata mais de palavras do que de conteúdo

FONTE CLERUS.COM

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

FUNDAMENTALISTA BIBLICO, o que é?

           
 História e Cristianismo em J. Gresham Machen – sobre o liberalismo e  fundamentalismo


O Fundamentalismo foi um movimento marcante de reação à entrada do Liberalismo Teológico nos arraiais das igrejas protestantes americanas no início do século XX. O termo “Fundamentalismo” é uma referência direta à obra de doze volumes intitulada The Fundamentals lançada em 1910. Seu conteúdo professou guerra aberta contra o ateísmo, o catolicismo, o socialismo, a filosofia moderna, o mormonismo, o espiritismo e muitos grupos semelhantes, mas principalmente, a Teologia Liberal “que se baseava numa interpretação naturalista das doutrinas da fé, a alta crítica alemã e o darwinismo, que pareciam subverter a autoridade da Bíblia” (MCINTIRE em ELWELL, 1992, v.2, p. 187).
Duas informações nos fornecem uma noção do impacto da obra: 1) O número de exemplares: Foram três milhões de cópias distribuídas gratuitamente por todo território americano. 2) As denominações incluídas: A obra teve a co-autoria de presbiterianos, batistas e anglicanos de vários lugares como Inglaterra, Escócia, Canadá e EUA.
Há historiadores como Roger E. Olson que dividem o fundamentalismo em duas fases: moderada e extremista (cf. OLSON, 2001, p. 576-84). Para ele, Machen e The Fundamentals fazem parte dessa primeira fase moderada. Mcintire divide a história do fundamentalismo em quatro fases (cf. MCINTIRE, 1992, p. 187-90).
Em sua primeira das quatro fases, o Fundamentalismo lutava pelos elementos fundamentais da fé cristã. Entretanto, não demorou muito e “a lista dos inimigos tornou-se mais estreita e os fundamentos, menos abrangentes” (MCINTIRE, 1992, p. 187) desviando o movimento do seu foco inicial. É na primeira fase, nesse cenário turbulento de luta direta contra o Liberalismo, que surge a figura de J. Gresham Machen.
Machen está ligado (como um protagonista de valor) a quase todas as obras literárias quando a matéria é a controvérsia Fundamentalismo-Liberalismo (cf. PIERARD em ELWELL, 1992, p. 424-29; CAIRNS, 1995, p. 420-33; HART, 1993; DOLLAR, 1962; NOLL et. al, 1983, p. 378-82; MCINTIRE, 1992). Apesar de não apreciar a denominação “fundamentalista”, Machen e o Fundamentalismo (da primeira fase) tinham um inimigo comum – o Liberalismo. Nas palavras do próprio Machen: “Na presença de um grande inimigo comum, eu tenho pouco tempo para atacar meus irmãos [fundamentalistas] que permanecem comigo na defesa da Palavra de Deus” (STONEHOUSE, 1954, p. 337-8). Ele acreditava viver em tempos de conflito. Em suas palavras, “O presente não é tempo para tranquilidade ou prazer, mas para seriedade e obra súplice” (MACHEN, 2001, p. 172).
Para muitos, Machen foi o principal teólogo do movimento (OLSON, 2001, p. 557). A explicação para tamanha reputação se encontra em sua erudição, mas principalmente por sua obra Cristianismo e Liberalismo onde se propõe demonstrar que o “Liberalismo moderno […] não é cristão” (MACHEN, 2001, p. 18).
Por sua erudição, por seus feitos numa época marcante para o protestantismo, pelo impacto e, principalmente pela natureza holística de sua obra, justifica-se uma análise cuidadosa de sua vida e obra. Todavia, devido às limitações de espaço, nos deteremos a um aspecto marcante de seu material apologético: O assentimento da historicidade dos eventos bíblicos como fator indicador da autêntica ortodoxia cristã.
O artigo que segue trará uma breve biografia de Machen seguida de uma análise de sua magnum opus (Cristianismo e Liberalismo); em seguida exporá a importância da história no cristianismo tendo o Liberalismo e a Neo-ortodoxia (dois fenômenos confrontados por Machen) como contraponto. Por fim, uma palavra sobre a perspectiva de Machen quanto à crítica histórica.
2 UMA BREVE BIOGRAFIA (cf. STONEHOUSE, 1954; NICHOLS, 2004; KELLY, Em ELWELL, v. 2, p. 463-4. MACHEN, 2001, p. i-iv).
Nascido em Baltimore em 28 de julho de 1881, John Gresham Machen era parte de uma família presbiteriana próspera, tanto financeira quanto culturalmente. Seus pais, Arthur W. Machen e Mary G. Machen o introduziram em um estilo de vida que combinava piedade e intelectualidade. Machen sempre foi encorajado a buscar o melhor da educação. Por exemplo, logo cedo foi acostumado a falar francês em casa. Sobre sua erudição e embates com os liberais, Olson diz que “Seus oponentes teológicos liberais não conseguiram encontrar nenhuma falha em sua erudição e nem demiti-lo taxando-o de obscurantista demente, como costumava fazer com outros fundamentalistas” (OLSON, 2001, p. 577).
Formou-se com honras (primeiro da turma) na Universidade de Johns Hopkins em 1901, e logo após estudou um ano com o famoso estudioso do grego bíblico B. L. Gildersleeve (na época, presbítero de sua igreja). Em 1902 se matriculou em Princeton. Em 1905 concluiu sua graduação. Lá, estudou com homens como B. B. Warfield e Greahardus Vos. Após a conclusão dos seus estudos em Princeton (1905), foi convidado por Francis L. Patton e William P. Armstrong a ser instrutor de grego bíblico. Porém, preferiu ir a Alemanha estudar em Marburg e Göttingen. Lá estudou um semestre em cada instituição. Teve como um de seus mestres o famoso liberal Wilhem Herrmann. A despeito da extraordinária influência de Wilhem Herrmann e da crise teológica decorrente dessa, Machen, com ajuda de B. B. Warfield, Patton e Armstrong, persistiu numa visão conservadora quanto às Escrituras.
De volta ao território americano, aceitou o convite de ensinar grego bíblico em Princeton. Na época, o livro texto era Essentials of New Testament Greek de Huddlestone. Por considerá-lo “pobre e escasso”, Machen o complementou com exercícios extras produzidos por ele mesmo. Em 1923, suas notas de aula se converteram em New Testament Greek for Beginners. Sem dúvida, uma obra marcante para todos os estudantes iniciantes de grego do Novo Testamento do século XX.
Em 1920 Machen teve sua primeira participação controversa em sua denominação. Valdeci da Silva Santos nos explica:
Naquela ocasião [Assembléia Geral], os delegados da reunião deveriam votar o Plano Filadélfia, que previa a coalizão de dezenove pequenas denominações presbiterianas em uma única denominação nacional. […] contrariando os colegas de cátedra [Joseph Ross Steveson e Charles Eerdman], Machen se opôs ao plano, por entender que ele pretendia uma reunião jurídica e uma pluralidade teológica indesejável (SANTOS, 2004, p. 152).
Em 1923 Cristianismo e Liberalismo, um marco para o fundamentalismo, foi lançado confrontando não somente o Liberalismo como todos os que o toleravam. A obra evidenciou ainda mais as diferenças entre liberais e ortodoxos que, até então, ainda coexistiam nas mesmas denominações e instituições de ensino. Algumas das novas denominações criadas a partir de 1930 foram: Igrejas Fundamentalistas Independentes dos Estados Unidos (1930); Associação das Igrejas Batistas Regulares (1932); Igreja Presbiteriana Ortodoxa (1936); Igreja Presbiteriana Bíblica (1938) e Associação Batista Conservadora dos Estados Unidos (1947).
Com a persistência da Presbyterian Church in the U.S.A. (doravante, PCUSA) e Princeton em tratar as diferenças nas instituições como questões meramente administrativas e não doutrinárias, Machen, após muitas lutas, deixa Princeton em 1929 para fundar no dia 25 de setembro do mesmo ano o Seminário Teológico de Westminster. Depois da derrota no tocante a Princeton, Machen perdeu a luta com respeito à Junta de Missões Estrangeiras. Foram várias as acusações feitas ao Teólogo de Princeton. Dentre elas: falta de zelo e fidelidade em manter a paz na igreja (MACHEN, 2001, p. iii). No dia 29 de março de 1935 foi suspenso do ministério da PCUSA. Em 1936, junto com outros cinco mil conservadores fundou a Igreja Presbiteriana da América, que posteriormente foi denominada Igreja Presbiteriana Ortodoxa (OPC).
Resistindo aos conselhos de amigos, Machen foi para o Estado de Dakota do Norte em resposta a um convite para pregar. No decorrer da viagem contraiu pneumonia e no primeiro dia de 1937 veio a falecer com apenas 55 anos de idade. Como Calvino e outros grandes homens que representam uma era, Machen teve um fim prematuro. Suas últimas palavras foram: “Sou grato pela obediência ativa de Cristo sem a qual não há esperança” (MACHEN, 2001, p. iv).
3 CRISTIANISMO E LIBERALISMO, SUA MAGNUM OPUS
A produção literária de Machen é extensa; inclui artigos, pregações e livros. De todas elas, Cristianismo e Liberalismo é, sem dúvidas, a mais emblemática. Stonehouse, um dos grandes biógrafos de Machen, dedica um capítulo inteiro sobre a obra (STONEHOUSE, 1954, p. 336-50). Aqui queremos alistar duas possíveis razões para sua proeminência: 1) A repercussão e 2) Seu conteúdo holístico.
3.1 A Repercussão.
Nenhum livro faz sucesso somente devido ao seu conteúdo. É na sintonia entre conteúdo e o “espírito de mundo” (zeitgeist) e/ou contexto histórico que encontramos a fórmula do sucesso. Faz-se, pois, necessário uma palavra sobre o contexto histórico de Cristianismo e Liberalismo.
Segundo Stephen J. Nichols: “O contexto imediato de Cristianismo e Liberalismo é o sermão pregado por Harry Emerson Fosdick no dia 21 de maio de 1922 cujo título era ‘O Fundamentalismo ganhará?” (NICHOLS, 2004, p. 82). Stonehouse corrobora as palavras de Nichols ao afirmar que a aceitação de Macmillan se deu porque foi “influenciada pela atenção que tinha sido atraída para Fosdick, a grande controvérsia, e a força do movimento de reafirmação dos fundamentos” (HART, 1995, 341).
Fosdick “foi um dos clérigos mais influentes da primeira metade do século XX” (LINDER em ELWELL, 1991, v.2, p. 183) bem como um dos maiores “popularizadores do liberalismo teológico moderno” (LINDER, 1991, p. 183). Por seu empenho em defesa do Liberalismo, foi denominado pelos conservadores de “Moisés do modernismo” e “Jesse James do mundo teológico”.
A influência de Fosdick e sua pregação explícita contra o fundamentalismo explicam a aceleração da publicação de Cristianismo e Liberalismo. Era preciso uma resposta rápida e à altura. E Macmillan encontrou um excelente representante do lado conservador da controvérsia. A editora recebeu o livro no início de dezembro de 1922 e dois meses depois foi publicado. Segundo Stonehouse, “durante do resto do ano um pouco menos que mil cópias foram vendidas, mas em 1924, quando o livro tornou-se popular e a controvérsia [fundamentalismo-modernismo] tornou-se mais intensa, a venda total aproximou-se das cinco mil cópias” (STONEHOUSE, 1954, p. 341).

O sucesso de vendas não é a única amostra de sua importância e/ou proeminência em relação às suas outras obras. Foram várias as recomendações feitas por especialista. Mas ficaremos com a mais simbólica; as palavras de comentarista secular Walter Lippmann:
É um livro admirável. Por sua perspicácia, por sua importância, e por seu tino, esta fria e rigorosa defesa do protestantismo ortodoxo é, penso, o melhor argumento popular produzido pelo outro lado da controvérsia. Faremos bem ouvir o Dr. Machen. Os liberais ainda têm que respondê-lo (NICHOLS, 2004, p. 82).
3.2 O Conteúdo Holístico
Como o próprio título revela, a obra lida com uma situação histórica específica: A distinção entre Liberalismo (modernismo) e Cristianismo torna o primeiro uma ameaça a ser condenada, justificando-se, pois, uma luta aberta contra o mesmo.
Machen lida, pois, com condições peculiares dos seus dias; como por exemplo, a aceitação de liberais em instituições cristãs; a desonestidade desses na manutenção de expressões ortodoxas, porém, redefinidas, bem como no uso dos recursos de instituições confessionais. O uso constante da expressão “situação presente”, “presente controvérsia”, “no presente”, “o presente”, “medidas necessárias hoje” (MACHEN, 2001, p. 163, 166, 169, 170, 172) reforça sua preocupação com uma situação histórica particular. Em alguns casos, Machen usa o termo “igreja” pressupondo tratar-se da “Igreja Presbiteriana”. Alguns dos conselhos do último capítulo só poderiam ser aplicados ao governo de igreja por ele defendido (presbiteriano), revelando assim, a aplicabilidade restrita da obra.
Apesar de sua natureza particular, em Cristianismo e Liberalismo Machen não nos proporciona somente um manual peculiar aos presbiterianos contra o Liberalismo Teológico do início do século XX, tornando-se uma obra “presa” a um contexto histórico particular. Antes, por tratar com os elementos essenciais do cristianismo, ou seja, as doutrinas inegociáveis que fazem do cristianismo, cristianismo, Machen, legou à Igreja as colunas doutrinárias do cristianismo.
Cristianismo e Liberalismo não somente nos ajuda a entender a como lidar com o Liberalismo; ele nos apresenta o que realmente é o cristianismo. Embora a obra tenha um caráter apologético, é uma obra mais positiva que negativa, por que enquanto combate o Liberalismo (natureza negativa), Machen nos ensina o que é Cristianismo (natureza positiva). “A resposta de Machen vai além da sua situação contemporânea e fala de questões de importância atemporal” (MACHEN, 2001, p. 83).
O caráter holístico da obra também é revelado em sua metodologia. Machen analisa o sistema a partir de seus fundamentos e/ou pressupostos. Sua crítica capital ao Liberalismo é que ele “[…] procede de uma raiz completamente diferente”, ou “bases da fé” (MACHEN, 2001, p. 172) opostas. Aqui Machen nos alerta para o fato de que é exatamente nos fundamentos que se trava a verdadeira batalha pela fé. Toda teologia é construída a partir de pressuposto e/ou fundamentos; e é ai que as batalhas devem ser travadas.
A declaração que segue revela a consciência de Machen do caráter atemporal de sua defesa do cristianismo: “a investigação com a qual estamos agora preocupados é sem dúvida a mais importante de todas aquelas com as quais a igreja deve lidar” (MACHEN, 2001, p. 19).
Por sua natureza holística, Cristianismo e Liberalismo ajuda-nos a julgar e/ou entender assuntos outros como espiritualidade, exclusivismo, ecumenismo, milagres, crítica bíblica, apologética, linguagem religiosa, amor, justiça, salvação, pragmatismo, a natureza da fé etc. Sua metodologia de abordagem ao Liberalismo pode ser usada para avaliação de qualquer fenômeno religioso. Ela pode ser usada contra o subjetivismo do misticismo bem como a secura anti-sobrenatural do cristicismo histórico que negava os eventos mais importantes do cristianismo (morte e ressurreição de Cristo). Sem dúvidas, uma obra para todos os tempos.
4. CRISTIANISMO E HISTÓRIA
O tema “história” é uma constante na vida e obra de J. Gresham Machen. Ele aparece cedo nos escritos do teólogo de Pricenton. Permeia toda sua monografia de graduação sobre o nascimento virginal de Cristo e é tônica do seu sermão de ordenação cujo título era História e Fé: Um Evangelho despido da história é simplesmente uma contradição de termos (MACHEN, 2001, p.i.). A temática é reiterada várias vezes ao longo de sua produção literária.
4.1 O Liberalismo e a História
Sua preocupação com a história tinha uma explicação: A separação entre cristianismo e história era, para Machen, o grande interesse da teologia moderna (MACHEN, 1951, p. 170). Em suas palavras:
Em uma época como esta, é óbvio que cada herança do passado deve ser objeto de uma crítica aguda; […] a dependência de qualquer instituição do passado é agora, às vezes, até mesmo considerada como fornecedora de uma presunção não em função da mesma, mas contra. […] Se tal atitude for justificável, então nenhuma instituição é encarada com uma presunção hostil mais forte do que a instituição da religião cristã, visto que nenhuma outra instituição tem se baseado com mais honestidade na autoridade de uma era passada do que ela (MACHEN, 2001, p. 15).
Ele entendeu como poucos que quando o assunto é teologia moderna, uma das questões cruciais era o lugar da história no Evangelho cristão (HART, 1995, p. 344). Para Machen “O cristianismo […] é dependente da história” (MACHEN, 2001, p. 122). E ainda: “um evangelho independente da história é uma contradição de termos” (MACHEN, 2001, p. 122). Para ele:
O estudante do Novo Testamento deve ser primariamente um historiador. O centro e o cerne de toda a Bíblia é história. Tudo que está na Bíblia está ligado a um arcabouço histórico e nos conduz a um clímax histórico. A Bíblia é primariamente um livro histórico (MACHEN, 1951, p. 170).
A hermenêutica moderna foi alvo das críticas de Machen, pois não permitia se lê um evento sobrenatural como histórico. Machen detecta esse pressuposto ao afirmar que “a raiz do movimento [liberal] é uma; as variedades da religião liberal moderna são arraigadas no naturalismo – isto é, na negação de qualquer entrada do poder criativo de Deus” (MACHEN, 2001, p. 14). De encontro ao naturalismo Machen assegura que:
O Jesus apresentado no Novo Testamento foi claramente uma Pessoa histórica – isto é admitido por todos os que têm se confrontado com os problema [sic] históricos. Mas, o Jesus apresentado no Novo Testamento foi claramente uma Pessoa sobrenatural. Porém, para o liberalismo moderno, uma pessoa sobrenatural nunca é histórica (MACHEN, 2001, p. 108).
De Ritschl e Kant o Liberalismo herdou a idéia de que a mensagem religiosa se reduz à ética. Essa redução do cristianismo tinha uma relação direta com a desvalorização de sua historicidade. Vindo em uma corrente oposta, Machen afirma que a ética cristã (imperativo) está atrelada e/ou é decorrente do indicativo histórico da morte e ressurreição de Cristo. Em suas próprias palavras:
O pregador liberal está realmente rejeitando toda a base do Cristianismo, que não é uma religião edificada sobre aspirações, mas em fatos. Aqui se encontra a diferença fundamental entre o liberalismo e o Cristianismo – o liberalismo está, no geral, no modo imperativo, enquanto o cristianismo começa com um indicativo triunfante […] (MACHEN, 2001, p. 53).
Ainda pensando na relação entre ética e cristianismo, Machen argumenta que há fatos que se impõem em nossa vida. São eles: sofrimento, morte, culpa e pecado. A esses fatos, afirma Machen, “o pregador moderno responde – com exortação” (MACHEN, 1951, p. 171). A essa postura Machen contrapõe:
Muito eloqüente, meu amigo! Mas que pena! Você não pode mudar os fatos. O pregador moderno oferece reflexão. A Bíblia oferece mais. A Bíblia oferece notícias – não reflexão sobre o antigo, mas notícias de algo novo; não algo que pode ser deduzido ou descoberto, mas algo que aconteceu; não filosofia, mas história; não exortação, mas o Evangelho (MACHEN, 1951, p. 171).
No primeiro capítulo de sua magnum opus, Machen argumenta que a essência do cristianismo é doutrina. Uma clara rejeição do conceito sentimental e/ou experimental de religião defendido pelos liberais e herdado de Schleiermacher. Sobre a relação história e doutrina Machen afirma:
Desde o início, o evangelho cristão, como de fato o nome “evangelho” ou “boas novas” infere, consistia de relato de algo que havia acontecido. […] “Cristo Morreu” – isto é história; ‘Cristo morreu pelos nossos pecados – isto é doutrina. Sem estes dois elementos, conjugados em união absolutamente indissolúvel, não há Cristianismo.” (MACHEN, 1951, p. 35)
E mais:
O mundo deveria ser redimido através da proclamação de um evento. E com o evento estava o seu significado; e a apresentação do evento com seu significado é doutrina. Estes dois elementos estão sempre combinados na mensagem cristã. A narração dos fatos é história; a narração dos fatos com significado dos mesmos é doutrina (MACHEN, 1951, p 37).
Em suma, para Machen, no cristianismo, o sobrenatural, a ética, a doutrina e a história estão essencialmente conectadas. Nas palavras de Machen, trata-se de uma “união indissolúvel”. O abandono da história pode até manter a crença “filosófica” em Deus com seus corolários éticos. Porém, afirma Machen, o abandono da história, “nunca pode preservar o Evangelho, pois ‘evangelho’ significa ‘boas novas’” (MACHEN, 2004, p. 98).
4.2 A Neo-ortodoxia e a História
No dia 2 dezembro de 1929, A Savage of Scribner´s Publishing House enviou para Machen uma cópia da obra de Emil Brunner intitulada The Theology of Crisis. O objetivo da editora era uma recomendação e/ou conselho de um representante da ala conservadora (HART, 1991, p. 189). A resposta de Machen a Scribner “tornou-se sua resposta típica quando o assunto era neo-ortodoxia; disse que não entendia a teologia da crise como um retorno ao cristianismo evangélico, mas seu conhecimento limitado o impedia de um julgamento final” (HART, 1991, p. 189).
Um ano antes, em um artigo escrito em 23 de abril para um pequeno grupo de ministros, Machen demonstra muito cuidado em tomar uma posição para o movimento que estava surgindo – a teologia da crise. Em várias partes do documento Machen revela suas limitações. Ele diz que tem “poucas palavras” (MACHEN, 1991, p. 197) e que tem dificuldade de “explicar o que não entende” (MACHEN, 1991, p. 200).
Para Machen, em alguns assuntos como: o homem perdido no pecado e a graça de Deus como um dom de Jesus Cristo seu filho, a teologia da crise “soa como John Bunyan, João Calvino, o Catecismo Menor e a Fé Reformada” (MACHEN, 1991, p. 200). No entanto, apesar de todo cuidado para com assuntos não completamente compreendidos, Machen é firme em declarar que:
Eles [Barth, Brunner e seus associados] diferem, eu penso (se pudermos ignorar detalhes e irmos imediatamente ao centro das coisas) – eles diferem na sua epistemologia, diferem em sua atitude para com simples informação histórica que a Bíblia contém (MACHEN, 1991, p. 201).
Para Machen, Barth “tenta fazer a fé cristã independente das descobertas da história científica quanto a vida de Cristo” (MACHEN, 1991, p. 203). E ainda, “A atitude de Barth e seus associados no tocante ao criticismo histórico constitui uma fraqueza mortal da escola” (MACHEN, 1991, p. 204).
A despeito de sua reconhecida limitação julgamento, o grande incômodo para Machen está na estranha indiferença de Barth a questões de criticismo literário e histórico no tocante a Jesus Cristo. Essa indiferença era tamanha que até mesmo Bultmanm, com seu ceticismo extremo na esfera histórica, pode aparentemente ser considerado um membro da escola barthiana uma vez que era um dos contribuidores do jornal Zwischen den Zeiten (MACHEN, 1991, p. 204).
“A reação inicial de Machen ao barthianismo sugere que ele considerou a neortodoxia, em suas variações tanto na América quanto na Europa, como uma extensão do Liberalismo protestante ao invés de um repúdio” (HART, 1991, p. 193). Ambas as escolas tinham problemas quanto à historicidade do cristianismo. Na primeira, a negação do sobrenatural não permitia uma “leitura completa” do registro dos Evangelhos fragmentando-os na busca do Jesus histórico. Na segunda, as doutrinas basilares como Trindade, fé, pecado e redenção em Jesus eram fruto de uma leitura descompromissada e indiferente da história. Na primeira, o Evangelho era julgado pela crítica história naturalista; na segunda, a história era desvalorizada pelo subjetivismo decorrente do seu conceito deturpado de revelação. Ambas eram ameaças ao verdadeiro cristianismo, pois tinham negligenciado um elemento essencial – sua historicidade.
5 O CRITICISMO HISTÓRICO
Segundo Eta Linnemann, “Para a teologia histórico-crítica, a razão crítica decide o que é e o que não pode ser realidade na bíblia; e essa decisão é feita na base da experiência diária acessível a cada pessoa” (LINNEMANN, 2009, 101-102). Em outras palavras, “Aquilo que é espiritual é julgado segundo critérios da carne” (LINNEMANN, 2009, p. 102). Certamente partindo desse pressuposto, nunca chegaremos a conclusões de cunho sobrenatural. Pois, como bem colocou Augustus Nicodemus: “É sabido e reconhecido, nas mais diversas áreas do conhecimento, que a escolha de um método já determina, por antecipação, a extensão e o tipo de resultados da pesquisa” (LOPES, 2005, p. 136).
A despeito de seus pressupostos e métodos, para Machen “Não podemos, […], ser indiferentes ao criticismo bíblico” (MACHEN, 1951, p. 183-184). Ele entendia que a rejeição do caráter histórico das Escrituras era uma ameaça a igreja uma vez que a Escritura é o fundamento desta. “Machen não apenas censura as críticas liberais, mas também o que ele considerou a piedade convencional e descuidada do protestantismo” (HART, 1995, p. 37). Apelar para o sobrenatural não era o único caminho. Nas palavras de Hart:
Embora [Machen] cresse que a origem do cristianismo era sobrenatural e que a visão de Paulo é mais bem entendida com uma reflexão dessa realidade, Machen não se satisfazia com a história providencial para explicar a origem do movimento cristão (HART, 1995, p. 50).
“Ao invés de evitar os métodos e achados da alta crítica, como muitos conservadores fizeram, Machen usou a nova erudição tanto para defender o Cristianismo histórico quanto para atacar a complacência do protestantismo corrente” (HART, 1995, p. 50).
Para Hart, a postura de Machen tem explicação na sua formação em Princeton. “Tão incongruente quanto parece, a doutrina da inerrância bíblica do Seminário de Princeton instigou seus estudiosos a intensificar o estudo crítico ao invés de fugir dele” (HART, 1995, p. 42). Hart esclarece:
[…] teólogos de Princeton usavam métodos críticos para argumentar que inspiração e erudição avançada eram compatíveis. […] Ao invés de impor limites, essa doutrina [inspiração] permitiu os estudiosos de Princeton explorar completamente os aspectos humanos da formação e recepção da Bíblia (HART, 1995, p. 43).
Aqui se faz necessário uma palavra sobre o estudo da história no início do século XX. Uma nova concepção da pesquisa histórica estava surgindo – era a Nova História. Enquanto Machen “assumiu uma visão atemporal e estática do passado que objetivava encontrar o propósito original do autor” (HART, 1995, p. 55), os da nova escola estavam preocupados com os elementos sociais e culturais que explicavam os eventos históricos. Para essa escola, cristianismo não era definido pelos ensinos de Paulo e dos apóstolos; antes, como tudo nessa escola, Cristianismo era um fenômeno social. Muito da obra The Origin of Paul´s Religion de Machen foi investido para revelar “as explicações impróprias do naturalismo que atribuiu a crença de Paulo ao condicionamento do desenvolvimento histórico e cultural” (HART, 1995, p. 51).
Essa diferença entre escolas fica clara quando observamos as variações nos julgamentos feitos em resenhas e/ou comentários sobre The Origin of Paul´s Religion. Elas iam de elogios rasgados como os feitos por Benjamin W. Bacon até as críticas feitas por James Moffatt (HART, 1995, p. 53-4). Parte das críticas bem como dos elogios se davam pela concepção de história, e, por conseguinte, da metodologia empregada.
Machen reconhecia a intensa relação entre método e pressuposto. Ele era consciente de que não existia um “criticismo científico puramente neutro” (MACHEN, 2004, p. 519. Além disso, Machen tinha ciência de que muitas das pressuposições do criticismo eram naturalistas e por isso “uma pessoa sobrenatural, de acordo com os historiadores modernos, nunca existiu” (MACHEN, 1951, p. 175). Para ele, a negação do nascimento virginal, por exemplo, se dava por “pressuposições filosóficas ao invés da tradição histórica” (HART, 1995, p. 41).
Ele critica o pressuposto naturalista que nega o sobrenatural quanto lida com a tentativa liberal de separação o natural do sobrenatural no relato bíblico. Para ele “o processo de separação nunca foi realizado com sucesso.” (MACHEN, 2001, p. 108), pois revela inconsistência entre os pressupostos e as conclusões. Ele nos alista três razões para o fracasso de uma “leitura seccionada” dos Evangelhos:
Em primeiro lugar, existe a dificuldade inicial de separar a narrativa natural da narrativa sobrenatural nos Evangelhos. As duas são inextrincavelmente interligados. […] Em segundo lugar, suponhamos que a primeira tarefa tenha sido realizada. É realmente impossível, mas suponhamos que tenha sido realizada. Você tem o Jesus histórico – um mestre da justiça, um profeta inspirado, um adorador puro de Deus. […] Mas tudo em vão! […] Há uma contradição bem no centro do Seu ser. Essa contradição surge de sua consciência messiânica. (MACHEN, 1951, p. 176-7).
Aqui temos um grande problema, afirma Machen. Para os mesmo liberais que afirmam, por meio da crítica histórica, que Jesus tinha uma consciência messiânica, “um humilde mestre que pensa ser o juiz da terra […] seria um insano” (MACHEN, 1951, p. 176-7).
“Em terceiro lugar, o Jesus liberal é insuficiente para explicar a origem da Igreja Cristã. O poderoso edifício da cristandade não foi construído em um pin-point” (MACHEN, 1951, p. 176-7). E, nas palavras de Machen, “história odeia um vácuo” (MACHEN, 1951, p. 181-2). Para Machen, “A Igreja Cristã […] é fundamentada na ressurreição de Cristo dos mortos. Se a ressurreição é negada, então a origem da Igreja torna-se um problema insolúvel” (MACHEN, 1997, p. 58). “A igreja não foi fundada na memória de um mestre morto, mas na presença de um Senhor vivo. A mensagem, ‘Ele ressuscitou’ – é o coração do Evangelho” (MACHEN, 1997, p. 59). Com essas três considerações, Machen revela a contradição entre as conclusões dos liberais com seus pressupostos anti-sobrenaturais.
Em suma, Machen tinha o estudo da história como essencial para o estudante das Escrituras. Por ser um livro histórico, a Bíblia faz daqueles que a desejam entendê-la verdadeiros historiadores. O historiador, por sua vez, deve ser coerente com os dados extraídos da pesquisa histórica séria, providenciando assim explicações lógicas para os eventos históricos uma vez que “história odeia um vácuo”. Além disso, deve ser cuidadoso visto que não existe neutralidade na pesquisa histórica. Sem esquecer-se, claro, de não ignorar as pesquisas da crítica histórica.
6 CONCLUSÃO
Temos muito a aprender com o zelo de Machen para com a historicidade do cristianismo. São muitas as implicações extraídas das colocações feitas pelo teólogo de Princeton. Aqui queremos alistar cinco:
Em primeiro lugar, intelectualidade não é antagônica à espiritualidade. Não podemos apelar à providência sempre estivermos diante das acusações feitas por estudiosos ignorando os fatos que se impõe; nem muito menos supersticiosamente ignorar os dados do estudo crítico. Em contraponto, ao mesmo tempo em que nos desafia ao estudo profundo, Machen reconhece que toda análise é direcionada por pressupostos.
Em segundo lugar, o assentimento da historicidade dos eventos bíblicos nos desperta para a tarefa missionária. Por possuir uma mensagem histórica e não “existencial atemporal”, o cristão não pode esperar que o homem encontre dentro de si mesmo o diagnóstico e a resposta para seus problemas. Ele precisa ouvir a notícia da morte expiatória e ressurreição corpórea de Cristo para responder com fé. “A fé vem pela pregação” (Rm. 10.17).
Em terceiro lugar, Machen desafia a igreja a extrair das boas notícias tanto sua doutrina quanto sua ética. A ênfase em ética ou em bons conselhos desvinculada dos eventos chaves do cristianismo nivela a igreja cristã a outras religiões. “É a conexão da experiência presente do crente com a aparição histórica real de Jesus no mundo que previne nossa religião de ser misticismo e faz com que seja cristianismo” (MACHEN, 2001, p.122).
Em quarto lugar, Machen nos ajuda com a tarefa apologética. A fé é uma resposta a um evento histórico (Rm. 10.17), portanto, não pode nascer de dentro de nós mesmo via argumentação. Nenhuma manobra filosófica pode levar pessoas à fé cristã visto que fé é uma resposta (reação) ao anúncio de um evento histórico. Em suas palavras: “não algo [é] que pode ser deduzido ou descoberto […] não filosofia, mas história” (MACHEN, 1951, p. 171).
Por último, Machen desafia aqueles que hoje se denominam “fundamentalistas” a lutar pelos elementos fundamentais da fé como aqueles da primeira fase. Quando estudamos a história de Machen, ficamos tristes em constatar que os “princípios elementares” dos primeiros fundamentalistas tornaram-se “pormenores fundamentais”. A luta dos primeiros fundamentalistas era pela inerrância das Escrituras, a historicidade dos eventos bíblicos etc. Hoje, ser fundamentalista é lutar por ou contra instrumentos musicais, versões, dispensacionalismo  e questões específicas envolvendo a liberdade de consciência. Essa, com certeza, não foi a luta de Machen; certamente não é a minha, e espero que não seja a sua.

Entendendo os fundamentalistas - Parte 1


O nome fundamentalistas foi cunhado para se referir aos conservadores que se coligaram para defender a fé cristã da intrusão do liberalismo.
Para muitas pessoas, o tema deste artigo pode parecer árido, acadêmico e sem qualquer importância. Entretanto, considerando os argumentos abaixo, sua relevância ficará clara. Primeiro, o fundamentalismo está em evidência no mundo . Em todo o mundo, grupos religiosos fundamentalistas estão crescendo rapidamente. Na América Latina, grupos pentecostais radicais se multiplicam e mudam as estatísticas gerais. Na Coréia do Sul e no Taiwan, centros do confucionismo neotradicionalista se firmam. No Japão, uma nova versão radical do budismo cresce rapidamente. E o fundamentalismo do mundo islâmico é conhecido por todos.
Nos Estados Unidos e em outras partes do mundo, o fundamentalismo cristão ganha força, após um período de aparente extinção. Muito embora existam profundas diferenças entre esses grupos mencionados, eles têm em comum o desejo de retornar aos fundamentos e às origens de sua religião, e estão dispostos a lutar por isto.
Segundo, o termo “fundamentalista” designa uma larga porcentagem do cristianismo norte-americano , com ramificações no mundo e também no Brasil. A influência do fundamentalismo no Brasil não pode ser esquecida ou minimizada.
Terceiro, o uso pejorativo do termo . Determinados termos, dentro do cristianismo, acabam por perder seu sentido original e adquirir uma conotação pejorativa. Não poucas vezes, estes termos pejorativos são usados irresponsavelmente para rotular adversários políticos e eclesiásticos, e com generalizações injustas. Se pudermos, devemos sempre ajudar a esclarecer o que o termo significa.
E, finalmente, existem bem poucos estudos sobre o tema “fundamentalismo” no meio evangélico. Se pudermos ajudar no esclarecimento da Igreja de Cristo sobre este assunto, ficaremos gratos a Deus.

O surgimento do liberalismo teológico

A melhor maneira de compreender a origem do termo “fundamentalista” é entender o crescimento do liberalismo teológico radical nas principais denominações históricas dos Estados Unidos no fim do século XIX e início do século XX. O liberalismo era, de muitas maneiras, um fruto do iluminismo, movimento surgido no início do século XVIII que tinha em seu âmago uma revolta contra o poder da religião institucionalizada e contra a religião em geral. As pressuposições filosóficas do movimento eram, em primeiro lugar, oracionalismo de Descartes, Spinoza e Leibniz e o empirismo de Locke, Berkeley e Hume. Os efeitos combinados dessas duas filosofias – que, mesmo sendo teoricamente contrárias entre si, concordavam que Deus tem que ficar de fora do conhecimento humano – produziu profundo impacto na teologia cristã.
Em muitas universidades cristãs, seminários e igrejas da Europa (e, posteriormente, nos Estados Unidos), as idéias racionalistas começaram a ganhar larga aceitação. Não é que os teólogos se tornaram ateus ou agnósticos, mas sim, que procuraram compatibilizar a crença em Deus com os postulados do racionalismo. Muitos teólogos passaram a afirmar a existência de Deus, mas negavam sua intervenção na História humana, quer através de revelação, quer através de milagres ou da providência.
Como resultado da invasão do racionalismo na teologia, chegou-se à conclusão de que o sobrenatural não invade a história . A história passou a ser vista como simplesmente uma relação natural de causas e efeitos. O conceito de que Deus se revela ao homem e de que intervém e atua na história humana foram excluídos “de cara”. Como conseqüência, os relatos bíblicos envolvendo a atuação miraculosa de Deus na História, como a criação do mundo, os milagres de Moisés e os milagres de Jesus, passaram a ser desacreditados. Segundo esta linha de pensamento, já que milagres não existem, segue-se que esses relatos são fabricações do povo de Israel e, depois, da Igreja, que atribuiu a Jesus atos sobrenaturais que nunca aconteceram historicamente.
Para se interpretar corretamente a Bíblia, seria necessária uma abordagem “não religiosa”, desprovida de conceitos do tipo “Deus se revela”; ou: “A Bíblia é a revelação infalível de Deus”; ou ainda: “A Bíblia não pode errar”. Teólogos protestantes que adotaram essa abordagem crítica (que consideravam como “neutra”) justificavam-se afirmando que a Igreja Cristã, pelos seus dogmas e decretos, havia obscurecido a verdadeira mensagem das Escrituras. No caso dos Evangelhos, os dogmas dos grandes concílios ecumênicos acerca da divindade de Jesus haviam obscurecido sua figura humana e tornaram impossível, durante muito tempo, uma reconstrução histórica da sua vida. Esta impossibilidade, eles afirmavam, tornou-se ainda maior após a Reforma, quando a exegese dos Evangelhos e da Bíblia em geral passou a ser controlada pelas confissões de fé e pela teologia sistemática.
Os estudiosos críticos argumentaram ainda que, para que se pudesse chegar aos fatos por trás do surgimento da religião de Israel e do cristianismo, seria necessário deixar para trás dogmas e teologia sistemática, e tentar entender e reconstruir os fatos daquela época. O principal critério a ser empregado nessa empreitada seria a razão , que os racionalistas entendiam como sendo a medida suprema da verdade. As ferramentas a serem usadas seriam aquelas produzidas pela crítica bíblica, como crítica da forma, crítica literária, entre outras. Assim, muitos pastores e teólogos que criam que a Bíblia era a Palavra de Deus, influenciados pela filosofia da época, tentaram criar um sistema de interpretação da Bíblia que usasse como critério o que fosse racional ao homem moderno, dando origem ao chamado “método histórico-crítico” de interpretação bíblica.
Os estudiosos responsáveis pelo surgimento e desenvolvimento inicial do método crítico defendiam que o “dogma” da inspiração divina da Bíblia deveria ser deixado fora da exegese para que ela pudesse ser feita de forma “neutra”. Seguiu-se a separação entre Palavra de Deus e Escritura Sagrada, rejeitando-se o conceito da inspiração e infalibilidade da Bíblia. Surge a idéia de “mito” na Bíblia, que era a maneira pela qual a raça humana, em tempos primitivos, articulava aquilo que não conseguia compreender. Segundo os exegetas críticos, as fontes que os autores bíblicos usaram estavam revestidas de “mitos”, ou lendas criadas por Israel e pela Igreja apostólica. O surgimento da dialética de Hegel marcou esta fase. Hegel oferecia uma visão da História sem Deus, explicando os acontecimentos não em termos da intervenção divina, mas em termos de um movimento conjunto do pensamento, fazendo sínteses entre os movimentos contraditórios (tese e antítese).
A tentativa de unir o racionalismo com a exegese bíblica não produziu um resultado satisfatório. Ficou-se com uma Bíblia que deixou de ser a Palavra de Deus para se tornar o testemunho de fé do povo de Israel e da Igreja Primitiva. Como resultado, surgiu um movimento dentro do cristianismo que se chamou liberalismo, o qual rapidamente influenciou as igrejas cristãs na Europa, e de lá, seguiu para os Estados Unidos, onde defendia os seguintes pontos:
·        O caráter de Deus é de puro amor, sem padrões morais . Todos os homens são seus filhos e o pecado não separa ninguém do amor de Deus. A paternidade de Deus e a filiação divina são universais. 
·        Existe uma centelha divina em cada pessoa . Portanto, o homem, no íntimo, é bom, e só precisa de encorajamento para fazer o que é certo.
·        Jesus Cristo é Salvador somente no sentido em que ele é o exemplo perfeito do homem . Ele é Deus somente no sentido de que tinha consciência perfeita e plena de Deus. Era um homem normal, não nasceu de uma virgem, não realizou milagres, não ressuscitou dos mortos. 
·        O cristianismo só é diferente das demais religiões quantitativamente, e não qualitativamente . Ou seja, todas as religiões são boas e levam a Deus; o cristianismo é apenas a melhor delas. 
·        A Bíblia não é o registro infalível e inspirado da revelação divina , mas o testamento escrito da religião que os judeus e os cristãos praticavam. Ela não fala de Deus, mas do que criam sobre ele. 
·        A doutrina ou as declarações proposicionais, como as que encontramos nos credos e confissões da Igreja, não são essenciais ou básicas para o cristianismo , visto que o que molda e forma a religião é a experiência, e não a revelação. A única coisa permanente no cristianismo, e que serve de geração a geração, é o ensino moral de Cristo. 
Nem todos os liberais abraçavam todos estes pontos, e havia diferentes manifestações do liberalismo. Entretanto, todas elas estavam enraizadas no racionalismo (só a ciência tem a verdade) e no naturalismo(negação da intervenção criadora de Deus no mundo), e queriam adaptar as doutrinas do cristianismo à moderna teoria científica e às filosofias da época.


A reação conservadora: surgimento do fundamentalismo cristão

O nome “fundamentalistas” foi cunhado para se referir aos pastores, presbíteros e professores conservadores americanos de todas as denominações históricas que se coligaram para defender a fé cristã da intrusão do liberalismo nos seus seminários e igrejas. O nome foi usado por três motivos. Primeiro, os conservadores insistiam que o liberalismo atacava determinadas doutrinas bíblicas que eram fundamentais do cristianismo e que, ao negá-las, transformava o cristianismo em outra religião, diferente do cristianismo bíblico.
Segundo, a publicação em 1910-1915 da série “Os fundamentos”, doze volumes de artigos escritos por conservadores que defendiam os pontos fundamentais do cristianismo e atacavam o modernismo, a teoria da evolução etc., dos quais foram publicadas 3 milhões de cópias e espalhadas pelos Estados Unidos. Há artigos de eruditos conservadores como J.G. Machen, John Murray, B.B. Warfield, R.A. Torrey, Campbell Morgan e outros.
Terceiro, a elaboração de uma lista dos pontos considerados fundamentais do cristianismo. Muito embora o conflito entre liberais e fundamentalistas envolvesse muito mais do que somente esses tópicos, citados abaixo, foram considerados na época pelos conservadores como os pontos fundamentais da fé e do cristianismo evangélico, tendo se tornado o slogan dos conservadores e a bandeira do movimento fundamentalista:
A inspiração, infalibilidade e inerrância das Escrituras – reagindo contra os ataques do liberalismo que considerava que a Bíblia estava cheia de erros de todos os tipos.
A divindade de Cristo – também negada pelos liberais, que insistiam que Jesus era apenas um homem divinizado.
O nascimento virginal de Cristo e os milagres – para o liberalismo, milagres nunca existiram, eram construções mitológicas da Igreja primitiva.
O sacrifício propiciatório de Cristo – para os liberais, Cristo havia morrido somente para dar o exemplo, nunca pelos pecados de ninguém.
Sua ressurreição literal e física e seu retorno – ambas doutrinas eram negadas pelos liberais, que as consideravam como invenção mitológica da mente criativa dos primeiros cristãos.
Em 1920, o termo “fundamentalistas” foi empregado por conservadores batistas para designar todos aqueles que lutassem em favor destes cinco pontos. O uso se espalhou para todos, de todas as denominações afetadas pelo liberalismo que lutavam para preservar estas doutrinas fundamentais do cristianismo, e que se alinhavam teologicamente com o conteúdo da obra “Os fundamentos”.



Entendendo os fundamentalistas - Parte 2


Uma análise do desenvolvimento histórico e teológico do fundamentalismo na Igreja Cristã nos Estados Unidos e no Brasil 

As principais fases do movimento fundamentalista nos Estados Unidos
Nesta parte, analisaremos o desenvolvimento histórico e teológico do fundamentalismo na Igreja Cristã nos Estados Unidos e no Brasil. Podemos dividir sua história em quatro fases.

Fase 1: Conflito e derrota (até meados da década de 1920)

 Nesta fase inicial, líderes conservadores levantaram a bandeira contra o liberalismo ou modernismo dentro de suas denominações. Eles estavam lutando contra a incredulidade, antes que os liberais finalmente tomassem o controle dos seminários e da administração. O objetivo era expulsar os liberais das fileiras das igrejas. Várias medidas foram tomadas com este fim. Entre elas destacamos a publicação da série “Os fundamentos”. O alvo foi atacar o naturalismo, o liberalismo e todos os males a eles associados. A inerrância da Palavra de Deus é reafirmada nesta obra como sendo doutrina bíblica e fundamental. Os conservadores, a esta altura já conhecidos como “fundamentalistas”, se organizam em associações e em movimentos dentro das denominações. Surgem as listas dos “pontos fundamentais” que, embora variando quanto aos itens, concordam que a inerrância da Bíblia é essencial. As denominações realizam encontros e reuniões para debater o assunto.
Um importante fato ocorrido neste período foi que J. Gresham Machen e outros importantes professores conservadores deixam o Seminário Presbiteriano de Princeton, que fica nas mãos dos liberais, e fundam o Seminário de Westminster. É publicado o importante livro de Machen, Cristianismo e liberalismo (1923), um clássico sobre o assunto. Os fundamentalistas tentam também, através dos meios políticos, promulgar leis federais e nos Estados, proibindo o ensino do evolucionismo. Mas são derrotados no caso Scopes (1925), o julgamento de um professor de escola secundária que ensinava evolução em classe. Gradativamente, o movimento fundamentalista começa a adotar o pré-milenismo como um dos pontos fundamentais da fé cristã, o que provocará, na fase seguinte, um importante racha no movimento
.
Fase 2: Separação e organização (até meados da década de 1940)

Nesta fase, o movimento fundamentalista percebe o fracasso em expulsar os liberais das fileiras das grandes denominações reformadas, muito embora os conservadores fossem a maioria nestas denominações. Como resultado, separam-se, formando novas instituições, associações, igrejas e denominações. São formadas novas denominações , como a Associação Geral de Igrejas Batistas Regulares (1932), a Igreja Presbiteriana da América – que, em seguida, mudou o nome para Igreja Presbiteriana Ortodoxa (OPC), liderada por J. Machen (1936) –, a Associação Batista Conservadora da América (1947), as Igrejas Fundamentalistas Independentes da América (1930) e muitas outras. No sul dos Estados Unidos, os fundamentalistas dominaram a maior denominação batista, a Convenção Batista do Sul, a Igreja Presbiteriana do Sul, a Associação Batista Americana e muitas outras denominações. Todas estas defendem os pontos fundamentais, particularmente a inerrância da Palavra de Deus.
Os fundamentalistas formaram também muitas associações e juntas missionárias, seminários e institutos bíblicos, periódicos, conferências bíblicas pelo país afora para evangelização, defesa da fé e treinamento bíblico de pastores, missionários e obreiros. O movimento começa a associar-se com alguns valores morais da cultura americana, como a abstinência completa do álcool.
É nesta fase que o movimento fundamentalista se divide pela primeira vez. A causa da separação foi que muitos fundamentalistas queriam considerar o pré-milenismo como um dos pontos fundamentais do cristianismo. Além disto, havia a identificação crescente deles com a total abstinência de bebida alcoólica e rejeição das descobertas e avanços das ciências. Sai um grupo liderado por Carl McIntire para formar a Igreja Presbiteriana da Bíblia e o Seminário Teológico da Fé (1938). Com ele saíram Francis Schaeffer e Alan McRae, que posteriormente vieram também a afastar-se de McIntire.
O ponto principal é que nesta fase entra no movimento fundamentalista o conceito de separação organizacional de qualquer associação ou denominação que mantenha e tolere liberais em seu meio . Infelizmente, os fundamentalistas entenderam que a separação era a única forma bíblica para manter a pureza da fé e a integridade dos pontos fundamentais do cristianismo. Conseqüentemente, o termo “fundamentalista” começa a ter conotação de intransigência, divisionismo, intolerância, anti-intelectualismo e falta de preocupação com problemas sociais. Assim, no fim desta fase, o nome “fundamentalistas” se referia aos cristãos conservadores separatistas, que eram maioria dentro das denominações ao sul dos Estados Unidos, e aos que haviam saído de suas denominações, formando outras de caráter eminentemente fundamentalista.

Fase 3: Neo-evangelicalismo (até meados de 1970)

Nesta fase o fundamentalismo continua a batalha contra o liberalismo, de fora das denominações e contra um novo inimigo, o neo-evangelicalismo. O movimento ganha repercussão internacional. Os fundamentalistas criam programas de rádio e televisão e fundam faculdades que os mantêm unidos e ligados como numa rede invisível. É então que surge o neo-evangelicalismo ou evangelicalismo , uma ala dentro do movimento fundamentalista que deseja preservar os pontos fundamentais da fé, mas não deseja o espírito separatista da primeira geração de fundamentalistas. O evangelicalismo procura comunhão e associação com outros cristãos, pentecostais, conservadores e mesmo liberais, desejando fugir do rótulo “fundamentalista”, embora afirme, a princípio, a inerrância das Escrituras.
Esta segunda divisão no movimento atinge seriamente igrejas, denominações e seminários fundamentalistas. Os que se consideravam “evangélicos” saem do movimento fundamentalista para formar novas associações e igrejas “evangelicais”. Em termos organizacionais, surge nos Estados Unidos o Concílio Americano de Igrejas Cristãs, fundado por Carl McIntire (1941), representando os fundamentalistas, e a Associação Nacional de Evangélicos (1942), representando os evangelicais. Surgem o Seminário Fuller, a revista Christianity Today , o Wheaton College e a Associação Billy Graham, dentro da perspectiva “evangelical”. O fundamentalismo começa a atacar o evangelicalismo, considerando-o um grande perigo ao verdadeiro cristianismo por causa de sua abertura a outros cristãos, associação com liberais e tendência de acomodar a fé à ciência moderna.
Da parte dos fundamentalistas, é criado o Conselho Internacional de Igrejas Cristãs (1948), formado por denominações, igrejas e indivíduos que se identificaram com a bandeira fundamentalista, em oposição ao Conselho Mundial de Igrejas (CMI), ecumênico e liberal em muitos aspectos. Nesta fase, o fundamentalismo se tornou menos proeminente, e alguns até pensaram que havia morrido. Na verdade, estava se expandindo através de evangelização, publicações, plantação de igrejas e programas de rádio.

Fase 4: Luta contra o humanismo secular (até meados de 1980)

A partir da campanha de Ronald Reagan para a presidência dos Estados Unidos, o fundamentalismo americano entrou numa nova fase. Ganhou proeminência por oferecer uma solução para a crise social, econômica, moral e religiosa da América, que envolvia legalização do aborto, proibição da leitura da Bíblia e oração nas escolas públicas etc. O inimigo era o humanismo secular , responsável por corroer os valores morais, as escolas, universidades, o Governo e a família. Os males associados ao humanismo eram: evolucionismo, liberalismo político e teológico, moralidade frouxa, perversão sexual, socialismo, comunismo e o ataque à autoridade das Escrituras. Para combater o novo inimigo, surgem de dentro do fundamentalismo novos ministérios fundados e liderados por uma nova geração de fundamentalistas, utilizando-se da mídia televisiva e impressa. Entre eles despontam Jerry Falwell, Tim LaHaye, Hal Lindsey, James Dobson e Pat Robertson. A base era a Convenção Batista do Sul, mas atingiram rapidamente todas as denominações e também outros países, como o Brasil. Ao contrário de gerações anteriores de fundamentalistas, envolveram-se com questões sócio-políticas. Fundamentalistas antigos, como Carl McIntire, somem do cenário por causa de desgaste político e extremo isolamento.
O alvo principal dos ataques fundamentalistas nesta época era o domínio do governo por humanistas e as conseqüências disto para a nação, em termos da libertinagem e relaxamento dos valores morais. Acreditavam que havia uma conspiração humanista para tomar a América e banir o cristianismo. A luta do fundamentalismo é contra os direitos dos homossexuais, do uso de drogas, o movimento feminista, associações com a Rússia, posse de armas. Por outro lado, os fundamentalistas se engajam na luta pelo ensino do criacionismo nas escolas, ao lado do evolucionismo.
Esses novos líderes fundamentalistas mantinham os mesmos pontos doutrinários e a mesma visão separatista da primeira geração de fundamentalistas, embora enfrentassem um outro inimigo, o humanismo secular. Sua mensagem foi de chamar a Igreja a retornar aos fundamentos da Palavra de Deus como chave para uma nova reforma na sociedade e na Igreja. Neste sentido, foi formada a Maioria Moral (1979), sob a liderança de Jerry Falwell, para combater o liberalismo moral e social nos Estados Unidos. Nisto se associam com católicos, pentecostais e judeus de pensamento igual ao deles.
O fundamentalismo ganhou mais força nesta época com o fato de que o movimento evangelical começou a dar mostras de que a política de boa vizinhança com liberais e católicos terminava em prejuízo para a fé bíblica. Líderes evangelicais, bem como seminários e publicações evangelicais, começaram a aceitar o evolucionismo teísta, o ecumenismo com católicos e liberais (Billy Graham). Associações evangelicais de teólogos começaram a tolerar teólogos que questionavam mesmo a onisciência de Deus. Por outro lado, os escândalos na década de 1980, envolvendo o casal Bakker, televangelistas fundamentalistas, causaram um grande revés no movimento fundamentalista nos Estados Unidos. Surgem movimentos radicais de dentro do fundamentalismo, como o Reconstrucionismo de Gary North e Rushdoony.
Apesar de tudo, o fundamentalismo nos Estados Unidos continua firme e crescendo. O crescimento, entretanto, não se faz em termos denominacionais, mas da multiplicação da mentalidade fundamentalista nos aspectos teológicos e apologéticos, dentro das denominações tradicionais e no crescimento de ministérios, missões, institutos e seminários de posição teológica fundamentalista.
(continua) 



Entendendo os fundamentalistas - Parte 3


Terminando essa série de artigos sobre o fundamentalismo cristão, gostaria de fazer algumas distinções sobre o termo “fundamentalista”. À semelhança de outros rótulos nos meios evangélicos, o rótulo “fundamentalista” também é mal compreendido e mal empregado. Nada mais natural do que procurar esclarecer o assunto. Acho que a primeira coisa é falar sobre os vários possíveis sentidos em que o termo “fundamentalista” é empregado.
 O fundamentalista histórico não existe mais. Ele existiu no início do século 20, durante o conflito contra o liberalismo teológico que invadiu e tomou várias denominações e seminários nos Estados Unidos. J.G. Machen, John Murray, B.B. Warfield, R.A. Torrey, Campbell Morgan e, mais tarde, Cornelius Van Til e Francis Schaeffer são exemplos de fundamentalistas históricos. Falei sobre esse tipo de fundamentalista no meu primeiro artigo dessa série.
O fundamentalista americano ainda existe, mas perdeu muito de sua força. Embora tenha surgido ao mesmo tempo que o histórico, separou-se dele quando adotou uma escatologia dispensacionalista, aliou-se à agenda republicana dos Estados Unidos, exerceu uma militância belicosa contra tudo que considerasse inimigo da fé cristã, como o comunismo, o ecumenismo, o liberalismo, a ciência moderna e o próprio evangelicalismo. Defendia e praticava o separatismo institucional de tudo e todos que estivessem ligados direta ou indiretamente a esses inimigos. Recentemente, faleceu o que pode ter sido o último grande representante desse gênero de fundamentalista, o famigerado Carl McIntire. Alguns consideram que Pat Robertson é seu sucessor, embora haja muitas diferenças entre eles. Veja mais sobre esse tipo no segundo artigo da série.
O fundamentalista denominacional é aquele membro de denominação que se considera oficialmente fundamentalista e que até traz o rótulo na designação oficial. Após um período de grande florescimento no Brasil, especialmente no Nordeste e em São Paulo, as igrejas fundamentalistas, presbiteriana e batista, sofreram uma grande diminuição em suas fileiras. Grande parte das igrejas fundamentalistas presbiterianas regressaram à Igreja Presbiteriana do Brasil, de onde saíram na década de 1950. Em alguns casos, o fundamentalismo denominacional do Brasil foi marcado por laços financeiros e ideológicos com McIntire. Hoje, até onde sei, não há mais esse laço.
No Brasil, o fundamentalismo denominacional que sobrou desenvolveu uma síndrome de conspiração mundial para o surgimento do reino do anticristo através do ocultismo, da tecnologia, da mídia, dos eventos mundiais, das superpotências. Acrescente-se ainda o desenvolvimento de uma mentalidade de censura e apego a itens periféricos como se fossem o cerne do Evangelho e critério de ortodoxia (por exemplo, só é bíblico e conservador quem usa versões da Bíblia baseadas no Texto Majoritário, quem não assiste desenhos da Disney e não lê a série “Harry Potter”).
O fundamentalista xiita é sinônimo de intransigência, inflexibilidade, ser-dono-da-verdade e patrulhamento teológico. Este tipo tem mais a ver com atitude do que com teologia. Nesse caso, é melhor inverter a ordem e chamá-lo “xiita fundamentalista”. Na verdade, xiitas podem ser encontrados em qualquer dos campos protestantes. A propalada tolerância dos liberais, neoliberais e neo-ortodoxos é mito. Há xiitas liberais, neoliberais, neo-ortodoxos e, obviamente, xiitas fundamentalistas. Teoricamente, alguém poderia ser um fundamentalista histórico e denominacional, e ainda não ser um xiita .
Por fim, o fundamentalista teológico , outro sentido em que o termo é muito usado. O fundamentalista teológico se considera seguidor teológico dos fundamentalistas históricos e simpatiza com a luta deles. Sem pretender ser exaustivo, acredito que são considerados fundamentalistas teológicos atualmente os que aderem aos seguintes conceitos ou a parte deles: a inerrância da Bíblia, a divindade de Cristo, o seu nascimento virginal, a realidade e a historicidade dos milagres narrados na Bíblia, a morte de Cristo como propiciatória, sua ressurreição física de entre os mortos, seu retorno público e visível a este mundo, o conceito de verdades teológicas absolutas, o conceito de que Deus se revelou de forma proposicional, a aceitação dos credos e confissões da Igreja Cristã, a adoção do método gramático-histórico de interpretação bíblica, uma posição conservadora em assuntos como aborto e eutanásia, a preferência pela pregação expositiva, gosto pelos escritos dos puritanos antigos e modernos, a rejeição do liberalismo teológico e da neo-ortodoxia, a crença de que Deus criou o mundo em sete dias, a rejeição da ordenação feminina, não-rejeição da pena de morte e outros. Há quem queira acrescentar a essa lista os que votaram contra o desarmamento, são contra o esquerdismo brasileiro e gostam dos Estados Unidos.
Em linhas gerais, o fundamentalista teológico acredita que a verdade revelada por Deus na Bíblia não evolui, não cresce e nem muda. Permanece a mesma através do tempo. A nossa compreensão dessa verdade pode mudar com o tempo; contudo, essa evolução nunca chega ao ponto radical em que verdades antigas sejam totalmente descartadas e substituídas por novas verdades que, inclusive, contradigam as primeiras. O fundamentalista teológico reconhece que erros, exageros e absurdos tendem a ser incorporados através dos séculos na teologia cristã, e que o alvo da Igreja é sempre reformar-se à luz dos fundamentos da fé cristã bíblica, expurgando esses erros e assimilando o que for bom. Admite também que existe uma continuidade teológica válida entre o sistema doutrinário exposto na Bíblia e a fé que abraça hoje.
Na categoria de fundamentalistas teológicos, encontramos presbiterianos, batistas, congregacionais, pentecostais, episcopais e provavelmente muitos outros. É claro que nem todos subscrevem todos os pontos acima, e ainda outros gostariam de qualificar melhor sua subscrição. Contudo, no geral, acho que posso dizer que os fundamentalistas teológicos não fariam feio numa pesquisa de opinião sobre o que crêem os evangélicos brasileiros.
(Este artigo final é uma adaptação de meu post colocado no blog O Tempora! O Mores! )






A apresentação da leitura de Cristianismo e liberalismo tem por objetivo apontar o modo como John Gresham Machen identifica o liberalismo moderno como uma outra religião diferente da cristã. Aponta à religião cristã, os dogmas, doutrinas e a história neotestamentária como elementos fundamentais e inseparáveis caracterizadores desta Religião. Portanto, negá-los é negar todo o fundamento cristão.

Por que ler Machen hoje? Quando igrejas e seminários teológicos sucumbem desacreditados dos dogmas e da veracidade dos relatos bíblicos, sem saberem a que se agarrar, o teólogo desafia a modernidade apresentando a histórica fé cristã como sempre atual.

Com Machen, a “fé conservadora” ergue a sua cabeça, não apenas para apontar os erros hermenêuticos e exegéticos (eixegéticos) modernos, mas também firmar a veracidade das Escrituras. E J. G. Machen não faz isto para se justificar das acusações recebidas da teologia liberal ou neo-ortodoxa nos séculos XIX e XX. pelo contrário, Machen procura colocar a fé conservadora sobre uma base de tal autoridade capaz de ser objetivamente plausível e analisável, em nada perdendo para o liberalismo e a neo-ortodoxia.

Acredita que esta fé poderá sobressair às duas correntes teológicas posteriores a ela. Pelo menos, assim julga ao expor que o seu “objetivo não é o de decidir a questão teológica dos dias atuais, mas, tão somente, apresentar a questão da maneira mais vívida e clara possível, para que o leitor possa ser auxiliado a decidir por si mesmo”.1 Deste modo, para ele, a opção pela Teologia Conservadora procede de bases justificáveis.

Curiosamente, Machen não aponta as influências do Iluminismo sobre a teologia intra ou extra-eclesiástica; afirma apenas que o surgimento do liberalismo teológico deveu-se às mudanças sociais e intelectuais surgidas no século XIX.  Conjuntamente às grandes invenções e ao industrialismo, as ciências surgidas com o especificismo2 do conhecimento humano em diferentes esferas, grassaram à fé e o orgulho de fazer parte deste momento histórico promoveu erosões profundas à fé cristã.

Tantas convicções tiveram de ser abandonadas que as pessoas acreditam que todas elas devem ser deixadas de lado. [...] o Cristianismo, durante muitos séculos, tem apelado para a veracidade de suas afirmações, não meramente nem mesmo primariamente segundo experiências atuais, mas de acordo com certos escritos antigos, dos quais o mais recente data de aproximadamente vinte séculos atrás.3

O fato de a religião cristã ter como base as Escrituras, frente à ciência contemporânea, ela não se retira e assiste alienada, de longe, o progresso desta como um inimigo capaz de lhe calar a voz. Àqueles que consideram a fé cristã (ortodoxa) como opositora à ciência e exige que ela siga por campo isolado do saber científico devem ser censurados, pois, “a religião se tem baseado em diversas convicções, especialmente na área histórica, que podem ser assuntos de investigação científica”.4 Não é acerca de tal investigação que os teólogos liberais foram levados a buscar a “essência do cristianismo”? Encontrar o “Jesus Histórico” dentre as flores do mito apostólico? Todavia, seria eficaz provar que o fundamento do cristianismo pode ser verificado pelas ciências humanas?

Segundo Machen, a questão não é tão somente impor o cristianismo como um fenômeno antropológico ou objeto de análise psicológica. Não se trata de fundamentar a fé cristã como objeto da filosofia da religião. Os campos científicos não se contentam em apenas estudar a superfície da fé cristã. É sabido que o materialismo moderno, logo que possível, se oporá tanto ao idealismo filosófico do pregador liberal quanto à fé nas doutrinas bíblicas.

Logo, o liberalismo teológico se apresentará como uma tentativa frustrada de manter o cristianismo confiável à geração vigente. Esta tentativa servirá, apenas para nos dar a certeza de que o liberalismo teológico, mesmo com  todo o seu esforço intelectual para apresentar a “religião cristã’ como racional, não é nem cristão, nem científico”.5

O argumento é lógico, uma vez que ao tentar a conciliação entre cristianismo e ciência moderna, o teólogo liberal abandona o que é característico à fé cristã: a crença no Salvador pessoal, bem como a historicidade factual da fé cristã; isto é, a ressurreição não só é dogma, mas também parte essencial da história6. O cristianismo não dicotomiza da história aquilo que é factual do que é evento. Cruz e ressurreição são elementos plenamente cabíveis numa mesma história.7

É deste modo que a própria necessidade dos milagres é exigida. Dizer que milagres não são possíveis, pois a História não lhe dá espaço numa existência onde o próprio Criador se condiciona a necessidade ‘situacional’, é ter como a única opção o misticismo ou imanentismo ou, até mesmo, o ateísmo.8 Seria negar o conteúdo bíblico, bem como, definir o Deus bíblico como simplesmente humano. Esta divindade é imanente, mas não transcendente. Não é sem razão que o melhor consolo à razão humana seria aceitar o Cristianismo como um estilo de vida, mas não como uma doutrina.9

Assim, resulta claro o caminho o qual Machen trilhará: nem cristão, nem científico; o liberalismo teológico é uma outra religião cujos fundamentos não procedem de uma fé propriamente histórica. Alimenta-se da estrutura de outra religião cuja vida engendra-se na história dos homens exigindo-lhes fé, mas suas raízes são outras. “O liberalismo moderno não somente é uma religião diferente do cristianismo, mas pertence a uma classe totalmente diferente de religiões.”10  Falta-lhe a fé cristã e a agradável utilização da razão. Mas, é fato que seu fundamento histórico se deve à religião cristã, sem a qual ele não conseguiria sobreviver. Caso fosse o contrário; caso fosse o cristianismo que dependesse do liberalismo moderno, teria este o poder para sustentar a ‘nova religião’?11

Se pudéssemos imaginar uma situação na qual toda pregação fosse controlada pelo liberalismo, o que já é preponderante em muitos lugares, cremos que o cristianismo já teria desaparecido da face da terra, e o Evangelho já não seria mais proclamado.12

Portanto, o liberalismo moderno, antagonicamente ao pretendido, ocupa um lugar inferior à própria fé cristã primitiva, cujo fundamento é as Sagradas Escrituras. A procura de elevar a fé cristã a uma certa posição de intelectualidade e razão histórica (perdida no kerygma do cristianismo primitivo), per si mesmo, o liberalismo moderno tornou-se num misticismo moderno13, cujas bases dependem d’outra religião14 à qual julga infantil.15

A base argumentativa na qual Machen sustenta a proposição de que o Liberalismo moderno não é Cristianismo está no Dogma e na História bíblica, presentes desde o princípio na Igreja Primitiva. Segue numa exposição intrinsecamente bíblica,16 expondo a proposição em seis pontos. Destes pontos, funda-se a proposição sobre as perspectivas dogmáticas e históricas dos evangelhos como factuais à situação17 humana. Uma mente arguidora perceberá facilmente que cada capítulo de Cristianismo e liberalismo reforçam a ideia de que o Liberalismo moderno é inconsistente para consigo mesmo, uma vez que exclui os dogmas centrais da fé cristã. Não é sem mais que Gresham retoma sempre, em cada capítulo, às “pressuposições da mensagem da fé cristã.” É ratificada a ideia da impossibilidade de um Jesus Histórico fora da realidade encarnacional na história.18

O Jesus histórico que os teólogos liberais diziam encontrar é estranhamente ausente nas mensagens da Igreja Neotestamentária. Segundo Gresham, se negada a divindade de Jesus Cristo e, sustentada apenas a ideia kerigmática dos apóstolos, até mesmo as mais restritas narrativas com informações das ações e relações eclesiásticas (desprovidas do aspecto do Cristo divino), entre a incipiente Igreja e os discípulos, também deveriam ser desconsideradas.19 Pois, é possível, ainda que com lentes puramente históricas, observar que havia um relacionamento de comum acordo entre os apóstolos quanto a Jesus ser mais do que um exemplo ético de filiação divina.20

Ora, os teólogos liberais e conservadores concordam, ao menos, que a questão crítica às epístolas paulinas confere com os dados históricos. Paulo teve contato com aqueles homens que, de alguma forma, seguiram a Jesus de Nazaré. Então, pelos escritos paulinos, obtemos uma amostra do tipo de fé que os crentes nutriam e relacionavam entre si. As epístolas paulinas servem-nos de fonte de
[...] abundante informação sobre a relação de Paulo com Jerusalém. Paulo era profundamente interessado pela igreja de Jerusalém; ao se opor aos seus adversários judaizantes, que de certa forma havia apelado, contra ele, aos apóstolos originais, Paulo enfatizou a sua concordância com Pedro e os outros. Mesmo os judaizantes não tinham objeção ao modo como Paulo considerava Jesus o objeto de sua fé; nas epístolas, não há o mínimo indício de que tenha ocorrido algum debate sobre esse assunto. [...] os apóstolos originais, evidentemente, não deram o menor indício de se contraporem aos ensinos de Paulo. [...] Toda a história do Cristianismo primitivo seria um labirinto sem saída se a igreja de Jerusalém e Paulo não tivessem feito de Jesus o objeto da fé. O Cristianismo primitivo, com certeza, não consistia em mera imitação de Jesus. [...] Jesus não manteve a sua pessoa fora de seu Evangelho, pelo contrário, apresentou-se como o salvador da humanidade.21
Procuraremos seguir lógica bíblica de J. G. Machen sobre três passos em seu livro, Cristianismo e liberalismo, a fim de entendermos o porquê de o liberalismo moderno (teológico) ser diferente do cristianismo. Antes, seguirá uma disposição geral do argumento descaracterizante entre as “duas religiões” e, depois, seguir-se-á a uma análise dos capítulos:

1. O liberalismo teológico não é cristianismo porque é inconsistente per si e/ou ilógico
J. G. Machen procura associar a busca do conhecimento com a religião. Se a ressurreição de Cristo tem alguma possibilidade de ser um fato (histórico), então, a razão que lida com ele, e dele depende, não pode ser desprezada pela fé. Esta ideia denuncia o erro do liberalismo moderno, uma vez que, manifesta a impossibilidade de a razão provar a fé. Não é plausível afirmar que a razão seja capaz de inferir a essência da religião. Assim, acreditar que se deve buscar pela essência religiosa no homem mediante manifestações empíricas paralelas à Bíblia, significa que o liberalismo está “somente rejeitando um sistema teológico e o trocando por outro”.22

A questão é lógica, pois, se ela versa sobre o fundamento da religião, todas as crenças são igualmente verdadeiras. Porém, “se todas as crenças são igualmente verdadeiras, e algumas delas contradizem as outras, então todas são igualmente falsas, ou pelo menos incertas”.23 

Tome-se, por exemplo, o Jesus Histórico. Este não pode ser sobrenatural, caso contrário, não seria histórico. Seria necessário que o Novo Testamento apresentasse o evento histórico separado das narrativas dos milagres. Mas, honestamente, o leitor sabe que tal separação (daquele evento histórico dos milagres a ele associados) desfaz o entendimento da própria narrativa em si mesma. O “cerne da trama” se desmancha e o próprio Jesus histórico torna-se alienado numa narrativa onde a referência a si mesmo não é distinguível. 24


2. O liberalismo moderno não é cristianismo porque possui características imanentistas que excluem a crença no Deus transcendente e pessoal:
A religião cristã lida com o paradoxo do Deus transcendental e imanente que coexiste perfeitamente com suas criaturas. Trata-se de uma questão ontológica, quando o Criador deve ser pessoal e, portanto, real (enquanto a criatura apenas existe).

A identificação de Deus para com o mundo se dá num livre ato de vontade e não de necessidade. Mas, ao criar, Ele necessariamente deve ser imanente aos seres criador, pois estes não tem razão de ser em si mesmos caso esse se retire. As Escrituras asseguram que no ato de criar, Deus mantém suas “propriedades” eternas como sempre foram, embora mantenha relações para com as coisas criadas, fora de si mesmo. Sem esta relação, os ‘entes’ não teriam permanência. Trata-se de uma relação de dependência do criado e não do Criador.

É por isto que a noção de paternidade universal é para os teólogos liberais uma das melhores maneiras de garantir a ligação entre Criador e criatura. Nela, ambos comungam duma mesma natureza, fazendo com que a religião assuma um papel, sobretudo, empírico ou “sentimental”. Todavia, “deve-se observar que, se a religião consistisse somente de sentimentos da presença de Deus, ela seria destituída de qualquer qualidade moral. O puro sentimento, se é que existe tal coisa, é não moral”.25 Não pode ser concebida na Religião a ideia do Transcendente e do Imanente sem que se formule um conceito ou um dogma sobre Deus.
[...] Faz toda a diferença o que pensamos sobre Deus; o conhecimento de Deus é a base da religião. [...] No liberalismo moderno, por outro lado, essa distinção tão aguda entre Deus e o mundo é totalmente destruída, e o nome “Deus” é aplicado no próprio processo natural. Encontramo-nos em meio a um grande processo que se manifesta naquilo que é extremamente pequeno e naquilo que é extraordinariamente grande [...]. A esse processo natural do qual nós fazemos parte, aplicamos o temível nome ‘Deus’. Dessa forma, portanto, Deus não é uma pessoa distinta de nós; pelo contrário, nossa vida é uma parte da vida dele. [...] O liberalismo moderno possui características panteísta, mesmo não sendo consistentemente panteísta. Sua tendência é se desfazer, em todos os lugares, da separação existente entre Deus e o mundo, e da precisa distinção entre Deus e o homem.26
3. O liberalismo teológico não é cristianismo porque nega o aspecto principal do cristianismo – o dogma como elemento factual da história
 O cristianismo é, inerentemente, a religião do dogma e da história. Isto é percebido na ideia de Machen sistematizada nos sete capítulos do livro. Logo na introdução se tem a tese de que o liberalismo teológico não pode ser cristianismo; o capítulo um dará lugar às doutrinas na religião cristã.

É significativo observar que o lugar das doutrinas se estenderá pelos demais capítulos subsequentes, o que fortalece a noção de que o cristianismo, além de fé e racionalidade, ocupa um lugar epistemológico como nenhuma outra religião o pode ocupar. Dos capítulos três ao sete, Machen argumenta em favor dos dogmas e confissões de fé sobre Deus e o homem, a Bíblia, Cristo, salvação e a Igreja.

3.1. A doutrina
Conforme observado acima, o cristianismo não pode ser crido independente da doutrina. A rejeição dos liberais à Teologia Conservadora não se deve às frases e palavras tradicionais, mas à semântica destas. Tornar a semântica das palavras e frases do credo cristão em ideias próximas às da nova religião é, pois, uma maneira de fortalecê-la sem que precise se expor e perder o espaço na igreja.

Poucos anseios têm sido mais exagerados, por parte dos professores de teologia, do que o de evitar ofender algo ou alguém. Muitas vezes, isso tem se aproximado perigosamente da desonestidade. O professor de teologia, no mais profundo do seu coração, está consciente do radicalismo do seu ponto de vista, mas permanece firme na decisão de não perder o seu lugar na atmosfera santa da igreja ao expor o que pensa.27

É perigoso acreditar que é racionalmente possível permanecer num campo neutro quando a questão é religião. Se hoje é incongruente aceitar a ideia de um sujeito neutro na abordagem científica, muito mais o será no âmbito da fé.28 O que se descobre no criticismo moderno é, antes de tudo, que a rejeição aos dogmas doutrinários da igreja se dá por certo grau de conveniência. Pois,
É desta forma que, comumente, se expressa a moderna hostilidade à doutrina. Mas será que é realmente a doutrina como tal que é rejeitada, ou será ou será que se rejeita uma doutrina específica, para o benefício de outra? [...] Existem doutrinas do liberalismo moderno que são defendidas com tanto vigor e intolerância quanto qualquer outra doutrina encontrada nos credos históricos. [...] são doutrinas como todas as outras, e assim exigem defesa intelectual. Ao demonstrar uma aparente rejeição de toda a teologia, o pregador liberal, muitas vezes, está rejeitando somente um sistema teológico e o trocando por outro. Assim, a tão desejada imunidade de controvérsias teológicas não é alcançada.29
Ora, negar a substituição dogmática entre as duas religiões é beirá-las ao ceticismo. Podemos até considerar as controvérsias doutrinárias como quirelas frente à necessidade de comunhão fraternal, ou seja, a experiência da fé na paternidade universal, e ainda assim o cristianismo excluirá qualquer ideia teológica que não compactue com o seu dogma. Mais uma vez, afirmamos que a rejeição aos dogmas cristãos é rejeição a todo o sistema cristão. O cristianismo exige que o seu sistema de fé caminhe com a história. Pois, dizer que o cristianismo é um estilo de vida é já, por si mesmo, submetê-lo à investigação histórica. Se o cristianismo é, então, um fenômeno histórico, deve ser investigado com bases históricas, não?

O conceito de Machen sobre doutrina pode fortalecer o comprometimento desta com a história. Segundo ele,
A doutrina cristã está nas próprias raízes da fé. Deve-se admitir, então, que se vamos ter uma religião não doutrinária, ou uma religião doutrinária fundamentada meramente em verdades gerais, isso significa que não somente temos  que nos livrar de Paulo, da igreja primitiva de Jerusalém, mas também de Jesus. Porém, o que significa doutrina? Aqui, ela tem sido interpretada como qualquer apresentação de fatos, com seus verdadeiros significados, que estejam na base da religião cristã. Contudo, essa é a única definição da palavra? Será que ela não pode ser tomada em um sentido mais específico? Não pode significar uma sistemática, minuciosa e unilateral apresentação científica de fatos? Se a palavra for tomada nesse sentido mais específico, será que a objeção moderna à doutrina não envolve meramente uma objeção à sutileza excessiva da controvérsia teológica, e de forma alguma uma objeção às brilhantes palavras do Novo Testamento?30
Resta-nos perguntar: como pensar no cristianismo sem história e na Bíblia sem o dogma? Ao que parece, o dogma é sempre um ponto de partida para qualquer forma de conhecimento e, mormente, os fatos históricos. É assim que, ao abrir mão dos fundamentos dogmáticos do cristianismo o pregador liberal abre mão desta religião. Abrir mão dos fundamentos dogmáticos cristãos, procurando fazer a distinção entre aquilo que é fato histórico do seu evento, é se tornar mais imperativo ou dogmático do que o próprio cristianismo em si. Pois, o cristianismo exige a fé em seus dogmas históricos, ao passo que o pregador liberal pressupõe uma fé que, para existir, deve expurgar a própria dúvida que dá razão a sua existência. Noutras palavras: o liberalismo moderno sem os dogmas cristãos se reinventa. A fé liberal existe em detrimento de uma história que surge como resquício da “verdade” que supera o mito.31 Logo, a fundamentação histórica do dogma cristão deve ser objetiva e, não subjetiva. A diferença entre o cristianismo e o liberalismo moderno consiste em a impossibilidade de indiferença quanto a tomada de posição à origem dos dogmas.

Fundamentemos, então, a necessidade de se ter os dogmas ligados à realidade histórica:

(A) “O cristianismo constitui um fenômeno histórico muito bem definido”
A religião cristã tem em sua origem a proclamação de uma mensagem tida por verdadeiro relato de fatos. Lembremo-nos que o apóstolo Paulo não teve com a Igreja da Galácia a mesma tolerância que houve para com os romanos. Paulo entendeu que a mensagem dos falsos mestres na Galácia atacaram os fundamentos da fé, ao passo que, em Roma, a mensagem, ainda que pregada pelos rivais, manteve suas bases. “Nunca passou pela mente de Paulo que um evangelho pode ser verdadeiro para uma pessoa e não para outra. [...] Ele estava convencido da verdade objetiva da mensagem do evangelho”.32

(B) O cristianismo é, em si mesmo, incongruente se doutrina e história dos relatos da igreja forem elementos distintos em sua aplicação à fé.33
A própria terminologia da palavra “evangelho” designa o pertencimento entre doutrina e história.  Evangelho é “boas novas” e, estas consiste em algo ocorrido.
E desde o início, o significado do que aconteceu foi estabelecido, e quando o significado foi estabelecido, surgiu a doutrina cristã. “Cristo morreu” – isso é uma referência histórica; “Cristo morreu pelos meus pecados” – isso é doutrina. Sem esses dois elementos, unidos de uma maneira indissolúvel, não existe Cristianismo.34
Ora, ao pensar nas “boas novas” qual mente não se volta ao seu oposto, isto é, ao estado anterior que lhe serviu de motivo porque ela veio a ser proclamada? Foi a mensagem da ressurreição como história fatual que deu origem à doutrina. “O mundo seria redimido pela proclamação de um evento; e com o evento, segui o seu significado; e o estabelecimento do evento, como seu significado, era uma doutrina. Esses dois elementos estão sempre juntos na mensagem cristã”.35

(C) O ensino de Jesus estava ligado ao ensino de uma doutrina
 Não precisamos falar da aplicação que Jesus fazia do Antigo Testamento aos seus contemporâneos. Todavia, é significativo dizer que ele aplicava as Escrituras como cumprimento à sua pessoa. Ele próprio não se mantinha fora do seu evangelho. A aplicação da lei à sua pessoa incluía-lhe como alguém autoconsciente de sua messianidade. Ele não só se incluía na história, como dizia ser parte inerente dela. Seja como for que os pregadores liberais descrevam a escatologia, as palavras de Jesus contidas nela apontarão para um evento no qual ele mesmo diz ser o agente. “A consciência de Jesus está em todo o lugar.”36

3.2. Deus e o homem
As duas pressuposições principais que diferem o cristianismo do liberalismo moderno são, certamente, o seu conceito sobre Deus e o homem. Já vimos, anteriormente, que a questão da imanência e transcendência divina são características fundantes para a economia soteriológica. Ainda que de difícil entendimento, no Novo Testamento são as duas quem possibilitam a própria ideia da redenção humana na pessoa de Jesus Cristo. Porém, o liberalismo teológico procura outro caminho para a salvação dos homens.

(A) Deus
Enquanto o cristianismo entende o conhecimento de Deus pelo viés da revelação, o liberalismo moderno ensina o sentimentalismo. Ainda assim, segundo Machen, o liberalismo é inconsistente, pois mesma a afeição humana é dependente de dogmas. As afeições não são oriundas de várias observações armazenadas na mente? É assim que a divindade de Jesus faz sentido. O conceito “Deus” não pode nos remeter primariamente a Jesus; antes, “a não ser que haja alguma ideia de Deus independente de Jesus, a confirmação de sua divindade não faz o menor sentido. Simplesmente dizer que ‘Jesus é Deus’ não tem sentido, a não ser que a palavra ‘Deus’ tenha um significado antecedente atrelado a ela”.37 Não teve que ser assim para que os próprios discípulos entendessem o conceito de “Deus” dito pelo Mestre?

Jesus apresenta aos discípulos um Deus pessoal e, ainda assim, supremo. A sua religião era baseada na crença da existência real de um Deus pessoal. A começar pelo próprio termo “pai”, embora aplicado em diversas religiões, nos lábios de Jesus o termo implica num relacionamento familiar cujo significado só tem valor em sua Pessoa.38 Portanto, o próprio conceito que o liberalismo moderno traz de paternidade universal implica numa perda do senso de transcendência divina.

(B) O homem
Uma vez perdida a noção da transcendência divina, o lugar do homem é suposto facilmente. Aplicar ao homem os conceitos tradicionais como, pecado original ou consciência de pecado, implica em compartilhar com deus de sua natureza mesma.

Assim, a revelação cede o seu lugar para a excessiva confiança na bondade humana. Isto priva, não somente a atribuição do mal à imanência divina, como também, elimina qualquer necessidade de intervenção externa à razão humana. O fundamento do cristianismo não é tão otimista quanto à bondade humana. “O humanismo cristão é tão mais elevado – um humanismo fundamentado não no orgulho humano, mas na graça divina”.39  O cristianismo tem, portanto, outro conceito sobre a natureza humana. Por isto, ao abandonar o conceito do Deus Vivo e a realidade do pecado, o liberalismo moderno coloca-se numa posição contrária ao cristianismo.


3.3. A Bíblia
A Bíblia é o elemento chave na fundamentação da fé cristã. Ela “contém o relato da revelação de Deus ao homem, que não pode ser encontrado em nenhum outro lugar”.40 As Escrituras põem o cristianismo como a religião do evento e não de ideias. Pois,
Todas as ideias do cristianismo poderiam ser encontradas em alguma religião diferente, e ainda assim não haveria o Cristianismo nessa outra religião, pois o Cristianismo não depende de um compêndio de ideias, e sim da narração de um evento. Sem esse evento, de acordo com o Cristianismo, o mundo é totalmente escuro, e a humanidade está perdida debaixo da culpa do pecado.41
Apelar apenas para o aspecto da experiência cristã como satisfatório para ser cristão não vale. A experiência cristã só é de fato válida se confirmada pela crença nos eventos escriturísticos como realmente fatuais. É por isto que J. Gresham Machen afirma que “a experiência cristã é corretamente usada quando afirma a evidência documentária. Mas ela jamais funcionará como substituto para evidência”.42 Fica claro, pois, que se a Bíblia não for aceita como um relato de fatos verdadeiros da revelação de Deus, cuja plena inspiração e inerrância é essencial para a fundamentação da Fé genuína, a religião será outra, mas não a religião cristã.43

A base para asseverar a diferença entre as duas religiões pode ser encontrada na própria consideração que Cristo faz às Escrituras. Se o liberalismo moderno rejeita o Velho Testamento, os argumentos e o “misticismo paulino”, e se atém somente ao que Jesus ensinava, pode-se perguntar: a qual regra autoritativa o pregador liberal se baseia, capaz o suficiente, para distinguir o que pode ou não ser aceito como oriundos dos lábios de Jesus? Qualquer leitor honesto sabe que as asseverações de Jesus Cristo sobre si mesmo, sobre Deus e o seu reino têm aplicações diretas sobre os seus ouvintes. O objetivo de suas palavras só será alcançado se amarrado ao todo contextual.44

Portanto, é evidente que essas palavras de Jesus, que devem ser consideradas autorizadas pelo liberalismo moderno, em primeiro lugar, devem ser selecionadas da grande massa de palavras preservadas, por meio de um processo crítico. O processo crítico, certamente, é muito difícil, e, muitas vezes, surge a suspeita de que o crítico somente retém como palavras genuínas do Jesus histórico aquelas que estão em conformidade com suas próprias ideias preconcebidas. Mesmo depois que o processo de refinamento foi concluído, ainda assim o estudioso liberal não consegue aceitar todas as palavras de Jesus como autênticas; por fim, ele deve admitir que mesmo o Jesus “histórico”, como o reconstruído pelos historiadores modernos, disse inverdades.45

Mais uma vez, a diferença entre a religião cristã e o liberalismo moderno reside no seu fundamento; isto é, o cristão aceita a Bíblia como verdade objetiva aplicável em todo o seu conteúdo; crê que ela é magistralmente apropriada para contemplar todos os eventos históricos da humanidade sem a necessidade de adequações de conteúdo às novas verdades emergidas da ciência. Pois, “quando a verdade é considerada somente como aquilo que funciona em um momento específico, então ela deixa de ser verdade. O resultado é um profundo ceticismo”.45 


3.4. Cristo
Se a mensagem das duas religiões (cristianismo e liberalismo) é diferente, obviamente, a origem desta diferença se deve a interpretação acerca da pessoa a qual se fundamentam.

Já foi observado, aqui, a maneira como a igreja primitiva e os apóstolos viam a pessoa de Jesus de Nazaré. Estes depositaram em Jesus toda a sua fé, como se crê no próprio Deus. Jesus era tal ponto considerado o objeto de sua fé que os apóstolos confiaram-lhe o destino de suas almas. Não se observa nenhuma reprovação por parte dos apóstolos originais à identificação de Jesus como objeto da fé Cristã, nos ensinos de Paulo. Os evangelhos revelam que Jesus evocava a fé em si mesmo como Deus. Observemos o argumento:

(A) Jesus não manteve a sua pessoa fora de seu evangelho
O Jesus histórico, resultado da redução e demintologiação, acaba por confirmar a expectativas e percepção que o mestre tinha sobre si mesmo. Suas mensagens informavam aos ouvintes que a única segurança eterna que poderiam ter, por parte de Deus, era tendo-O como objeto da fé. Suas pregações, antes de consolo, era a da ira de Deus que pairava sobre os homens pecadores. Conclusivamente, somente no Filho os homens seriam salvos.

Cristo Jesus é muito mais do que um exemplo de fé; é o objeto desta fé. Ele nunca convidou ninguém a ter como modelo a fé que ele tinha em Deus Pai. Antes, convidou os homens para crerem nele como o Filho de Deus.

(B) Jesus não era um cristão
Nietzsche afirmou, em uma de suas obras, que “no fundo, existiu apenas um único cristão, esse morreu na cruz. O que desde esse instante se chamou “evangelho” era já o outro contrário do que Cristo vivera: uma “má nova”.47 Esta crítica de Nietzsche de alguma maneira influenciou a muitos liberais ao ponto de inverterem a ordem histórica dos fatos. O fato de Jesus ser o fundador do Cristianismo não faz dele um cristão. O Cristianismo não poderia ser a sua religião, até mesmo por questões lógicas. Vejamos:

(i) A consciência messiânica de Jesus: As experiências de nosso Senhor não podem ser seguidas pelos crentes em todos os seus aspectos. Ele se intitulava o “Filho celestial de Deus, que deveria ser o juiz de toda a terra”.48 A menos que Cristo tenha abandonado o seu caráter santo e humilde, o seu exemplo poderia ser seguido nisto; ou não. Ele não seria um exemplo digno a ser seguido. Se Jesus tivesse assumido a sua consciência messiânica tardiamente, como alguns teólogos liberais afirmavam, este fato o tornaria menos digno ainda de confiança; o problema residiria, então, no âmbito moral.

(ii) A relação de Jesus para com o pecado: “Se Jesus está separado de nós pela sua consciência messiânica, ele está ainda mais fundamentalmente separado pela ausência do pecado em si”.49 Ele nunca demonstrou consciência alguma de pecado e, nem mesmo, qualquer um de seus perseguidores apontou-lhe um se quer.50
Esta era a mensagem pregada pelo cristianismo primitivo: a fé cristã é um meio para se livrar do pecado. E por si só, fica claro que Jesus não pode ser um cristão, uma vez que, a própria comunidade cristã primitiva o eximia de pecado. É forçoso mudar a concepção de salvação do Novo Testamento, quando o que se tem em vista é o que o Cristianismo significa. Segundo as narrativas neotestamentárias, Jesus representa bem mais do que uma figura de caráter exemplar; significa o perdão dos pecados. E, se Jesus era o objeto da fé, por meio de quem Deus perdoava pecados, ele mesmo não pode ser um cristão, “assim como Deus não pode ser religioso”.51

(iii) As reivindicações de Jesus: Jesus exigiu que aqueles que o seguissem estivessem dispostos a quebrar até mesmo os vínculos mais sagrados. O cristão não entende o chamado de Jesus como o de um mestre a ser seguido, mas como o chamado de um salvador a ser obedecido; não um exemplo de fé, mas o objeto da fé.

(iv) O cristianismo considera Jesus uma pessoa sobrenatural: Machen entende que “um evento sobrenatural é aquele que acontece pela ação imediata de Deus, no sentido de não acontecer por um intermediário”.52 Esta definição de milagre apresenta a necessidade de um Deus Pessoal, ao mesmo tempo em que exclui a necessidade de causas secundárias. A Bíblia apresenta o milagre como esta ação direta de Deus na natureza, admitindo, pois, que esta interferência em nada é arbitrária à ciência. Mas, se tratando de uma ação teísta primária na natureza, as duas naturezas de Cristo são claramente possíveis de existência no Jesus dos Evangelhos. É igualmente por isso que negar os milagres de Cristo é negar toda a sua Pessoa, bem como o próprio teísmo.53

Machen afirma que, por toda Escritura a mensagem central, isto é, a revelação de Deus na história mediante seu Filho Eterno, não pode ser considerada verdade se isolada a sua manifestação sobrenatural. A natureza divina per si a exige assim. Sem os milagres, pode ser que seja mais fácil crer no Novo Testamento. Porém, aquilo no qual se creria seria inteiramente diferente daquilo que se apresenta a nós agora. Sem os milagres, teríamos um mestre; com os milagres, temos um salvador.54

3.5- Salvação
Haja vista as proposições anteriores, é lógico que a noção de salvação apresentada pela teologia moderna (liberal) desenvolverá o sistema soteriológico sobre bases antropológicas. Nisto se distinguem radicalmente essas duas religiões, pois a salvação para o cristianismo é ato divino.

A concepção de pecado universal assume lugar importante, pois, impõe ao homem a condição de desespero e dependência absoluta em Deus. Esta diferença requer de Jesus uma manifestação salvadora e não, somente, ética. A ética é, para o Cristianismo, um motivo desesperador, uma vez que, em pecado, o homem não consegue por si mesmo se salvar. Machen aponta esta verdade quando critica a hermenêutica liberal acerca do Sermão do Monte; a moral torna-se relevante e possível somente se vivida em Cristo.55

Parece que, “não é a doutrina bíblica que é difícil de entender- realmente incompreensíveis são os elaborados esforços modernos para excluir a doutrina bíblica por causa dos interesses do orgulho humano”.56 Por que os liberais atacam a doutrina de expiação?  Machen encontra três motivos:

(1) A sua dependência histórica
Segundo Gresham, acatar a cruz de Jesus Cristo é contrassenso aos liberais. Estes procuram aplicar a fé nos efeitos obtidos pela cruz, mas não na causa em si. Isto dá maior poder às experiências e os fins práticos, devendo ser estes os desejados, e não o fator histórico e dogmático da morte do salvador.

Mas, Machen afirma que as experiências destituídas da história é um mero misticismo, mas nunca será o Cristianismo. Se o Cristianismo for aceito apenas como uma experiência religiosa, se tornará incongruente para com a sua própria mensagem. Enfim, não existe Evangelho sem que o tenha como fato histórico.

(2) A exclusividade da salvação ‘somente’ em Jesus
A ofensa aos liberais consiste em admitir a salvação ‘somente’ em Jesus. E aqueles que, mesmo bons homens, morrem sem Jesus? Machen alude que o problema não reside na exclusividade da pessoa de Jesus, mas na maneira como a igreja o tem levado. Segundo ele, “o nome de Jesus é estranhamente adaptável a pessoas em todo o tipo de contexto”.57 A responsabilidade para com o Evangelho é de confiança filial.

O liberalismo moderno pode objetar ainda que, Cristo morrer por todos os homens é um não-senso de justiça, pois em nada diminui a culpa do pecador; todos os homens devem ser individualmente responsáveis por seus pecados.

A resposta é simples: a visão acerca da majestade de Jesus foi perdida. A pessoa de Jesus não pode ser igualada aos demais homens. Perdida a pessoa divina de Cristo, a expiação centra-se no homem e, consequentemente, perde todo o sentido. E, mas uma vez, centralizar apenas um aspecto de Jesus nas Escrituras, ou apenas em alguns milagres faz com que todo o cerne da religião cristã perca o sentido e careça de linguagem acessível à razão humana.

(3) A doutrina cristã da cruz não condiz com o caráter de Deus
Os pressupostos cristãos acerca da ira e inimizade de Deus contra o homem pecador são criticados pelos liberais como inconsistente à natureza divina. Todavia, a visão liberal de pecado está aquém daquilo que o Novo Testamento anuncia. Perdoar a todos os homens sem a cruz não apaga a sua culpa. A cruz aponta para a necessidade de o homem não só desejar esquecer o pecado, mas o apagar para sempre.

Portanto, o conceito dos liberais acerca da moral está, até mesmo, muito aquém da moral apresentada nos evangelhos. Não é forçoso, então, considerar que a própria cruz é tanto a manifestação da ira de Deus sobre os homens quanto a prova de seu amor. “Se alguém, alguma vez, já esteve debaixo da verdadeira convicção do pecado, essa pessoa terá pouca dificuldade com a doutrina da cruz”.58

3.6. A igreja
Machen, quando ainda discute a ideia dos liberais sobre a salvação, afirma que o conceito de fé da igreja liberal é, essencialmente, fazer de Cristo o mestre da vida. Mas, para ele, isto anula não só o conceito neotestamentário de graça, mas o da própria justificação. Logo, se distancia da leitura que os reformadores protestantes deram da epístola aos Gálatas. Consequentemente, a esperança escatológica da parousia é outro elemento que, sem os conceitos abordados, é inexistente.59

A igreja do liberalismo moderno acredita que o que há de útil no cristianismo é a aplicação de “verdades morais”. Os cristãos, entretanto, crê que a aplicação do cristianismo é ocorrência de um ato primário de Deus, isto é, regeneração. Deste modo, o conceito que o cristianismo tem acerca da fraternidade é distinto ao do liberalismo moderno, não podendo ambos conviverem como uma religião e, óbvio, mesma instituição.

(A) O cristianismo não crê na fraternidade/paternidade universal
Salvaguarda a analogia de irmandade entre os homens como criados por Deus, o cristão considera como relacionamento fraternal somente aqueles que são redimidos por Cristo. É necessária a fé em tudo aquilo que os teólogos liberais negam.

(B) O cristianismo entende a transformação da sociedade possível somente pela Igreja Invisível de Cristo:60 “A igreja é a resposta cristã mais elevada para as necessidades sociais do ser humano”. E é sob esta perspectiva que a igreja não apenas se mantém, mas também, age na sociedade, quer com ações sociais, quer através de missões.

Todavia, se a igreja invisível tem em seu corpo dois posicionamentos opostos acerca da pessoa de seu Fundador e Senhor, a razão de ser deixa de existir. É certo que a igreja tem como característica uma mensagem baseada nos dogmas do Senhor ressurreto, divino. Negada tal verdade, o Cristianismo assumirá outra mensagem; isto é, uma transformação nem sempre possível, pois é baseada somente neste mundo.

Além do mais, cristianismo e liberalismo seriam igualmente desonestos. Simplesmente, os pressupostos assumidos por ambas as religiões não podem ser considerados com frivolidade. O cristianismo assume dogmas que não suportam meias verdades ou que não exija a exclusividade da fé.61
Quer goste ou não, essas igrejas estão fundamentadas em credos; elas são organizadas para a propagação de uma mensagem. Se alguém quiser combater essa mensagem em vez de propagá-la, não tem direito, não importa quão falsa seja essa mensagem, de ganhar uma posição vantajosa para combatê-la, ao fazer uma declaração de fé que não é- que se diga com todas as palavras- honesta. [...] ao perceber que as igrejas “evangélicas” existentes estão amarradas a um credo com o qual discorda, a pessoa deve se unir a alguma outra instituição ou fundar uma na qual ela se encaixe bem.62
O que Machen diz é que, as igrejas cristãs se unem em torno de uma mensagem baseada na Bíblia. É ao redor da fé no credo das Escrituras como inspiradas por Deus que as pessoas se reúnem. As diferenças levantadas entre elas não falha pela falta de definição.63 Isto, todavia, não é possível de se ver quando os liberais se reúnem com os cristãos. Eles rejeitam as convicções defendidas pelos crentes sem que antes busque entendê-las. Não é a fé conservadora que tem a “mente estreita”, mas os liberais.64 Não se trata de heresia, mas de um fundamento outro, que não o da fé evangélica. Não é próprio da fé cristã, desde o seu início, considerar os desvios doutrinários assunto primordial a ser debatido?

Portanto, parece ilógico querer que o liberalismo moderno continue entre os cristãos considerando-se uma parte dele. “Ele difere do cristianismo em seu conceito sobre Deus, o homem, a autoridade e sobre o caminho da salvação. E, não somente difere do cristianismo em teologia, mas também na totalidade da vida.”65



Embora, a crítica de Machen se refira ao Liberalismo moderno do início do século XX, o que torna seus escritos contemporaneamente válidos é o fato de tê-los feito sobre as bases da fé genuinamente cristã. Aquele que julga que esta fé não tem voz no presente século deve ler os argumentos macheanos a fim de descobrir quão sólida é a verdade que se vale das Escrituras. Pois, Machen é uma prova de que é possível, mesmo no século presente, o teólogo, estudante e pastor serem: eruditos, racionais, piedosos e relevantes; não sem, mas, mormente, se forem absolutamente fieis à Fé Cristã.

fonte teologia brasileira